Royalties do petróleo e do gás natural são um assunto jurídico complexo. Em termos teóricos, seria uma parte bastante específica do direito administrativo, impregnada, como toda a ordem jurídica, por princípios e dispositivos pertinentes à Constituição.
Há algum tempo, surgem aqui e ali manchetes ligadas ao tema, ora na imprensa geral, ora na especializada. Para além da atratividade em si da matéria, sob os aspectos teórico e prático, chamam a atenção os valores recebidos pelos entes públicos (especialmente pelos estados e municípios) e a criação de novas e variadas teses sobre o tema, numa busca incessante de municípios que querem participar dessa distribuição, sem possuírem em seu território qualquer equipamento significativo, ou sem que nele haja extração.
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A maior repercussão veio com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4917, no final de 2012, mediante lei que previa uma distribuição universal dos royalties. Ou seja, a partir desse momento, todos os estados e municípios receberiam royalties (em proporções ainda diversas), independentemente de haver ou não ali produção, ou do ente federativo possuir algum tipo de instalação de embarque e desembarque essencial ao transporte do óleo bruto ou do gás natural. A liminar dada pela ministra Cármen Lúcia continua dando a definição sobre o assunto, sem que o tema tenha ido a plenário.
Há mais de vinte anos, porém, ações judiciais já questionavam a retirada súbita de muitos municípios do rol de recebedores dos royalties, sem que lhes fossem dadas sequer oportunidade de defesa no âmbito administrativo, e sem qualquer alteração legal. Houve apenas uma espécie de revisão interna, pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), dos critérios até então aplicados.
Isso ocorreu com a edição da Portaria ANP 29/2001, que teve sua redação final definida após um intenso processo administrativo, no qual foi suprimido o § 4º do art. 2º. Segundo esse dispositivo, municípios que não se enquadrassem nas definições formais da norma poderiam pleitear sua inclusão no rateio, caso comprovassem ser afetados pelas atividades de embarque e desembarque de petróleo ou gás natural.
No parecer interno da ANP, foi registrado que a exclusão desse parágrafo visava a evitar uma “enxurrada de pleitos” para análise. No processo administrativo constou a seguinte observação: “A abertura prevista por este parágrafo, apesar de ser justa, por dar margem a uma avaliação de casos particulares não previstos na Portaria, pode ensejar uma enxurrada de pleitos para a ANP analisar”.
E é aqui que é necessário separar o joio do trigo. Ações justas e fundamentadas são diferentes de algumas teses criadas com pouca base constitucional ou legal, visando a aumentar o número de recebedores. E as constantes manchetes dos veículos de comunicação levaram quase a uma estigmatização do tema, tratando tudo como se fosse uma coisa só. Como referido, o tema é delicado e sensível, e não se pode cometer a injustiça de deixar de fora municípios responsáveis, por exemplo, por enormes estruturas de armazenamento do óleo bruto.
Sabemos que o Direito não pode ser tomado como uma aventura. Em muitas das novas teses, é efetivamente isso que ocorre. Outras, contudo, lidam com um cuidadoso trabalho de comparação. Perceba-se que a própria legislação (Lei 12.734) reconheceu, em 2012, alguns equipamentos de gás natural como aptos ao recebimento de royalties.
E aqui cabe a analogia com situações em que os municípios veem alterada sua vocação econômica ou passam a sofrer riscos ambientais, por sediarem equipamentos de monta. Tais municípios podem sofrer danos muito mais significativos, e têm uma essencialidade para a cadeia do petróleo, muito maior do que aqueles que apenas comportam equipamentos de gás natural.
O STJ debruça-se há quase 15 anos sobre temas de royalties. A atratividade do assunto, distinta, por exemplo, de áridos temas tributários, já levou magistrados a julgarem questões de mérito, sem antes passar por possíveis vícios de atos administrativos da ANP.
No mérito, dados da própria cadeia do petróleo, essencial à compreensão da norma (são parte do âmbito normativo, na já clássica redefinição do conceito de norma, feita pelo jurista Friedrich Müller), foram ignorados. Houve inclusive confusão entre downstream, momento em que o óleo transportado já está refinado, com funções típicas do mainstream, ligadas à extração e ao transporte inicial do óleo bruto.
Há ainda mais um ponto digno de nota: dificilmente o corpo jurídico de carreira dos municípios conseguirá levar adiante ações que passam por delicadas questões doutrinárias e que carecem de cuidadosa análise jurisprudencial, bem como de um trabalho bastante específico de produção de provas. Inspirar-se em petições iniciais de casos semelhantes já existentes raramente será suficiente.
Quaisquer que sejam os parâmetros de justiça adotados, a partir de avaliações mais imediatas e intuitivas; ou, como deve ser num Estado Democrático de Direito, a partir da Constituição e das leis pertinentes, as decisões judiciais sobre o tema não devem ser contaminadas por algumas poucas ações aventureiras.