Como o Banco Master transformou precatórios em CDBs — e pôs em xeque o sistema financeiro

No final de março, quando o Banco de Brasília (BRB) anunciou que havia firmado um memorando de entendimentos para a aquisição do controle acionário do Banco Master, os sussurros que rondavam a Faria Lima se tornaram mais altos. O motivo: o Master acumulava um passivo implícito de bilhões de reais em ativos com liquidez duvidosa, usados como base para a captação de depósitos garantidos pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC), como os Certificados de Depósito Bancário (CBD). “Todo mundo sabia que a estratégia do Master era irresponsável”, disse um analista do mercado financeiro ao JOTA sob condição de anonimato. “Quando saiu a operação com o BRB, ficou difícil de varrer isso para debaixo do tapete.”

A poeira então se espalhou. O acordo, divulgado em fato relevante ao mercado em 28 de março, prevê a aquisição de 58% do capital total do Master. Um mês depois, o Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) ajuizou uma ação civil pública solicitando a suspensão da compra. Obteve liminar favorável alguns dias depois, mas foi revertida pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) João Egmont. Os promotores argumentam que a operação descumpre exigências legais, como a necessidade de deliberação da assembleia de acionistas do BRB e autorização legislativa específica da Câmara Legislativa do Distrito Federal para que estatais participem de empresas privadas. Além disso, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público de Contas do Distrito Federal também instauraram investigações para apurar possíveis irregularidades na negociação, alegando possíveis riscos ao patrimônio público.

Isso porque a engenharia financeira do Master, comandado pelo empresário Daniel Vorcaro, converteu títulos judiciais da União, que têm risco de postergação no pagamento, em produtos bancários considerados de baixo risco, como CDBs e letras financeiras, cobertos pelo FGC. Segundo os dados do balanço patrimonial de 2024, o Banco Master mantinha cerca de R$ 17,9 bilhões em depósitos a prazo (dinheiro captado pelo banco, geralmente com promessa de devolução com juros). O valor é compatível com a estimativa dada ao JOTA por fontes do mercado de que aproximadamente R$ 18 bilhões tenham sido captados junto ao varejo via CDBs com garantia do FGC. Se esses ativos não forem liquidados no prazo esperado, a conta pode recair diretamente sobre o FGC, colocando em risco cerca de metade do seu montante.

Procurados, Master, BRB, FGC e Banco Central não retornaram aos contatos da reportagem. 

Da máxima ao master

O Master chegou a ter uma sede em um endereço cobiçado no coração do mercado financeiro, dividindo o prédio com empresas como o Google, com estruturas comparáveis a de instituições de maior porte. Foi uma transformação em relação ao passado: o Banco Master tem origem no Banco Máxima, fundado em 1970 e que, por décadas, manteve perfil discreto e atuação modesta no mercado. Com foco no mercado imobiliário, o então Máxima estava em situação complicada em 2016, quando Daniel Vorcaro, um empresário também do ramo imobiliário, virou sócio minoritário. 

Vorcaro e outros novos sócios fizeram aportes de R$ 400 milhões para recuperar o Máxima, segundo números divulgados pelos próprios à época. “Adquirimos um banco tradicional e promovemos uma verdadeira virada”, disse Vorcaro em uma entrevista à CNN em 2021, quando anunciou a mudança de nome para Master. Dos negócios focados em crédito imobiliário, o banco passou a operar também em crédito pessoal e consignado, serviços financeiros, seguradora e banco de investimentos. “Hoje, somos um banco digital, novo, ágil, inovador e capaz de atender nossos clientes em todos os segmentos”, afirmou Vorcaro ao Valor Econômico naquele ano.

Segundo reportagem da revista piauí, havia rumores sobre a presença de um “acionista oculto” no banco — especulava-se que Nelson Tanure, investidor conhecido por atuação em reestruturações de empresas, estaria por trás de Daniel Vorcaro. Na última terça-feira (20/5), o Estadão revelou que, no ano passado, a Polícia Federal abriu um inquérito para investigar o suposto papel de Tenure no Master, a pedido da gestora de investimentos Esh Capital. Para a piauí, Vorcaro afirmou que Tenure é “parceiro de negócios”. 

A falta de clareza sobre aspectos como quem estava de fato no comando traziam desconfiança ao mercado. “Quando eventualmente tentávamos sair com alguma operação que envolvia o Master, sempre tinha a negativa do mercado”, disse um advogado do setor ao JOTA. “Um banco pode até estar tecnicamente solvente. Mas, se o mercado começa a duvidar, ninguém mais senta com ele. E aí, acabou”, explica Jefferson Alvares, procurador do Banco Central.

Mas houve quem sentasse. Por exemplo, em maio de 2024, o Banco Master foi o principal injetor de recursos em um aumento de capital de R$ 1,5 bilhão na Oncoclínicas, empresa do setor de saúde voltada para tratamentos de câncer. Com isso, o Master passou a deter uma fatia de 12% do negócio, que despontou como queridinha durante sua listagem na B3 em 2021. Hoje, no entanto, a Oncoclínicas perdeu quase 90% do seu valor de mercado, com investidores desconfiados de seu crescimento acelerado a partir de parcerias com perfil de crédito mais arriscado. 

À revista piauí, Vorcaro afirmou que os movimentos do Master faziam sentido à época, já que o mercado parecia receptivo à pulverização com novas fintechs, que desafiavam a concentração no setor bancário no país. Mas as coisas mudaram e, para Vorcaro, aí vieram os problemas para o Master. “A partir de dois ou três anos atrás, no entanto, começou um movimento de concentração e essas corretoras começaram a ser compradas, como a Órama pelo BTG, a Guide pelo Safra”, disse ele à publicação. “Nós pressentimos, no final do ano passado, que novas regras poderiam dificultar ainda mais o nosso negócio e fomos em busca de alternativas.” E a compra pelo BRB seria uma dessas opções levantadas, segundo ele. 

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A transformação de Máxima em Master também contou com um novo Comitê Consultivo, que incluiu ex-ministros como Guido Mantega, Henrique Meirelles e, por um breve período, entre sua saída do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu posto como ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. Segundo o jornal O Globo, Mantega esteve no Palácio do Planalto e pediu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ajuda para evitar a bancarrota do Master.

Precatórios como ativos 

À primeira vista, as operações do braço bancário do Master são semelhantes às de todos os bancos – médios como ele, ou maiores. Eles captam via depósitos a prazo (como CDBs), e usam esses recursos para comprar créditos de terceiros ou conceder financiamentos. No entanto, o que distingue o caso Master é a concentração de risco em ativos com baixa liquidez e a transformação de papéis com dependência de pagamento do Tesouro em parte relevante da sua operação, com empacotamento passível de cobertura pelo FGC, algo que não é feito por outras instituições financeiras.

Bancos maiores, por exemplo, geralmente mantêm carteiras de crédito lastreadas em operações mais tradicionais e pagamentos mais previsíveis — como financiamento a empresas, crédito pessoal e imobiliário. Por exemplo, ao fim de 2024, o Itaú tinha, segundo seu balanço, mais de R$ 1 trilhão em crédito expandido, com pequena exposição a ativos estruturados ou judiciais, mais arriscados. O Bradesco seguia padrão semelhante. Ambos usam como funding uma combinação entre depósitos, letras financeiras e instrumentos de mercado, com diversificação e risco mais baixo.

Mesmo entre os bancos médios, comparáveis com o Master, o padrão se mantém mais conservador. O BMG, por exemplo, declarou patrimônio de mais de R$ 25 bilhões em depósitos, mas apenas R$ 5 bilhões em securitizações, e focadas em crédito consignado, que representa risco mais baixo. O Digimais, em seus relatórios de 2024, aponta como principal atividade a concessão de crédito para pessoas físicas com foco em portabilidade e veículos. 

Já o Master, segundo o balanço de dezembro de 2024, mantinha R$ 22,4 bilhões em carteira de crédito (dinheiro emprestado pelo banco, com expectativa de recebimento futuro com juros). Desse total, R$ 8,7 bilhões eram compostos por “direitos creditórios com expectativa de recebimento de recursos públicos”, isto é, precatórios e créditos tributários adquiridos pela instituição junto a terceiros.

Precatórios são dívidas que o poder público reconhece, por decisão judicial definitiva, e que devem ser pagas conforme cronograma orçamentário, o que pode levar anos. O banco Master também aposta em créditos tributários federais, valores que empresas ou pessoas têm a receber da União, geralmente por tributos pagos indevidamente ou reconhecidos judicialmente, e podem ser usados para compensar débitos fiscais ou vendidos a terceiros. Ambos são considerados de difícil liquidez e dependem de decisões administrativas ou políticas para serem pagos. Os precatórios estão sujeitos a filas constitucionais de pagamento, enquanto os créditos tributários exigem homologação da Receita Federal. Na prática, não há uma data determinada para que o pagamento ocorra: o banco pode apenas esperar receber do Tesouro Nacional. 

No entanto, nos balanços do Master, os precatórios são registrados a valor de custo amortizado, com base em laudos de avaliação. Isso significa que o banco registra, nos documentos, que conta com o recebimento integral desses precatórios, apesar da incerteza orçamentária da União intrínseca a esse tipo de título. A aposta, dessa forma, é que o governo federal irá pagar dentro do prazo. Mas isso está longe de ser regra. 

Um exemplo dessa incerteza é recente. A PEC dos Precatórios, promulgada como Emenda Constitucional 113 em 2021, permitiu ao governo adiar o pagamento de bilhões de reais em precatórios federais entre 2022 e 2026, criando um teto para esse tipo de despesa, em detrimento de outros gastos. À época, a medida foi criticada por criar insegurança jurídica e por transformar dívidas judiciais definitivas da União em passivos a serem pagos segundo conveniência fiscal. Já neste ano, o STF julgou inconstitucionais trechos da PEC que postergaram os pagamentos, obrigando o Tesouro Nacional a quitar os débitos. Em resposta, o Ministério da Fazenda anunciou que em 2025 seriam pagos R$ 70 bilhões em precatórios (parte deles, inclusive, fora da meta estabelecida na nova âncora do arcabouço fiscal).

Mesmo com esse cenário mais nebuloso, investir em precatórios não é incomum: há espaço em carteiras balanceadas para fatias menores de ativos mais arriscados. Mas essa não é uma estratégia típica dos bancos ao emitir CBDs. Esse tipo de operação é mais comum no mercado de escritórios de advocacia e fundos especializados. Nesses casos, os investidores adquirem os créditos com deságio, assumindo o risco e o tempo de espera até o pagamento pelo governo, em troca da possibilidade de lucro futuro. Escritórios estruturam essas operações para clientes, enquanto fundos formam carteiras com vários processos, buscando retornos mais elevados a prazos longos. A diferença é que esses fundos de direitos creditórios, ao contrário de um CBD, não contam com proteção do FGC, como o Master. 

Riscos

Para Jefferson Alvares, procurador do Banco Central, o uso de precatórios como ativos bancários não é, por si só, um problema, mas exige interpretação dos laudos de avaliação e forte governança sobre os critérios contábeis. “Você pode ter um ativo que, juridicamente, existe. Mas a pergunta prudencial é: quando esse ativo vai se tornar caixa? Qual é a probabilidade real disso?”.

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Quando se fala em regulação prudencial, isto é, as regras que buscam garantir a solidez e a estabilidade das instituições financeiras, o Brasil segue um conjunto de normas internacionais conhecidas como Acordos da Basileia. Esses acordos são elaborados pelo Comitê de Supervisão Bancária da Basileia, órgão ligado ao Banco de Compensações Internacionais (BIS), na Suíça. Os Acordos de Basileia são atualizados periodicamente, e o Basileia III, em 2010, pós-crise de 2008, introduziu exigências mais rigorosas de capital mínimo, liquidez e alavancagem, que devem ser seguidas por todas as instituições bancárias.

Segundo relatórios do Master de 2024, o índice de Basileia do conglomerado ficou em 11,51% em 2024, acima do mínimo regulatório de 10,5%. O piso regulatório é o  nível absoluto mínimo de capital que um banco precisa manter em relação ao seu risco total. Os documentos também mostram que o Master mantinha conformidade com os requerimentos mínimos, isto é, cumpria as exigências prudenciais mais amplas requeridas na Basileia III.

Estar em conformidade com esses padrões, no entanto, não garante que a operação do banco seja saudável. O índice de Basileia mede quanto capital o banco tem em relação aos seus ativos ponderados pelo risco (RWA). Mas esses riscos são calculados com base em modelos padronizados, e isso depende de como os ativos foram registrados: no caso do Master, os precatórios e créditos tributários foram registrados com expectativa de recebimento integral, o que diminui artificialmente sua ponderação de risco. Além disso, o índice de Basileia é um indicador de solvência contábil — não de liquidez real, isto é, a capacidade do banco de responder a saques imediatos.

Outras regulações são capazes de fazer isso — e o Brasil chegou a usá-las, como no caso do conglomerado econômico-financeiro, o CONEF, como explica Sérgio Werlang, ex-diretor de Política Econômica do Banco Central e professor da Fundação Getulio Vargas. “Em sua essência, o CONEF fazia com que, para fins prudenciais, qualquer empresa controlada por um banco teria que ser integralmente consolidada como se fosse uma instituição financeira. Aliado a isso, qualquer participação acionária não controladora era tratada como se fosse um ativo permanente, portanto sem liquidez. Por fim, os fundos eram sempre tratados pela composição de seus ativos. Por exemplo, um fundo com 50% em ações e 50% em títulos públicos líquidos era tratado como 50% liquidez e 50% ativo permanente”. Para o professor, o CONEF poderia ser usado, em adição ao conglomerado prudencial. “Eventualmente as instituições financeiras levariam tempo para adaptar-se a isto, podendo ser feito de modo gradual”, diz. 

Ao capitalizar os precatórios como crédito performado e a emitir CDBs lastreados nele, o Master ofereceu os títulos a investidores de varejo com taxas acima do mercado e garantidos até R$ 250 mil pelo FGC. Criado em 1995, o Fundo Garantidor de Créditos é uma entidade privada mantida por contribuições das próprias instituições financeiras. Ele assegura até R$ 250 mil por CPF por banco, por modalidade de produto, em caso de quebra da instituição. Essa estrutura permite que bancos médios e digitais captem com maior segurança no varejo, já que ajuda investidores a confiarem nas novas instituições, que ainda não têm reputação consolidada.

No entanto, a ausência de arcabouço legal em torno do FGC também faz com que o organismo atue em zonas cinzentas, muitas vezes assumindo responsabilidades aquém de sua capacidade. “Nos Estados Unidos, o fundo garantidor também cobre 250 mil dólares, só que a renda per capita de um americano é umas 10 vezes maior do que a renda brasileira”, diz Jefferson Alvares, do BC. “Isso dá a dimensão de quão generosa é o nosso sistema”. Há também um descompasso entre quem mais contribui e mais é protegido: os bancos maiores pagam mais, e acabam financiando a proteção de operações de bancos menores.

Nos primeiros meses de 2025, por exemplo, o Banco Master oferecia CDBs com rentabilidade de até 120% do CDI — uma taxa significativamente superior à de outros bancos. Apesar dessa rentabilidade ser um chamariz, o risco do empacotamento via CBD, ao estarem atrelados a precatórios e créditos tributários federais, era pouco transparente aos investidores do varejo. Enquanto isso, outras instituições médias como BTG Pactual e Banco XP praticavam remunerações entre 101,5% e 104,5% do CDI, e grandes bancos como Itaú, Bradesco e Banco do Brasil pagavam entre 97,5% e 101%. 

Na prática, isso significa que a instituição pôde captar e crescer rapidamente. Os ativos do Master saltaram de R$ 13,3 bilhões em 2022 para R$ 23,6 bilhões em 2024, mas ele não elevou proporcionalmente seu capital de base. Após o anúncio da possível aquisição pelo BRB, o banco passou a reduzir as taxas, com cortes de até 3 pontos percentuais nos pós-fixados e de ao menos 0,3 ponto nos prefixados. Além disso, no mercado secundário, onde investidores negociam títulos entre si, os CDBs do Banco Master chegaram a ser oferecidos com retornos de até 160% do CDI, reflexo da busca por liquidez por parte dos investidores diante das incertezas sobre a saúde financeira do banco.

“Janela” regulatória

A explosão dos CBDs do Master não passou despercebida pelo mercado, nem por reguladores, que ajustaram seus arcabouços para, aparentemente, conter operações como as que foram empreendidas pelo banco. Entre os ajustes regulatórios mais recentes adotados pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), a Resolução 5.114, de dezembro de 2023, limita o grau de alavancagem de instituições financeiras de menor porte por meio da emissão de CDBs. Antes da norma, que entrou em vigor em março de 2024, não havia um teto claro que restringisse quanto um banco podia crescer com base exclusivamente na captação por CDBs, o que favorecia estratégias de crescimento acelerado. Com a nova regra, o CMN passou a estabelecer que o saldo de CDBs emitidos por uma instituição financeira não pode ultrapassar seis vezes o seu Patrimônio Líquido de Referência (PLR). Assim, a nova regra cria um limitador estrutural: quanto menor o capital próprio do banco, menor a sua capacidade de captar via CDBs.

Outra medida, a Resolução BCB 346/23, publicada em março de 2023, passou a determinar maior exigência de capital para ativos como precatórios, alterando a ponderação de risco deles dentro do RWA do Índice de Basileia — o que impediria o registro feito pelo Master nos balanços, que contabilizava o pagamento dos títulos como certo. No entanto, sua aplicação efetiva foi postergada até janeiro de 2025, por meio da Resolução BCB 448/24. Até lá, os bancos puderam continuar registrando esses créditos com menor peso de risco, reduzindo, assim, a necessidade de capital próprio.

Foi desta forma que o Master conseguiu aproveitar uma “janela” regulatória: nos documentos entregues ao Banco Central, o Master reconhece que os efeitos da norma só começarão a impactar seus índices de capital em 2025. Em 2024, ele ainda operou sob o regime anterior. Segundo Alvares, procurador do Banco Central, o caso Master evidenciou uma prática comum: o uso de brechas temporárias para crescer mais rápido do que o sistema comporta. “Isso é algo que já vimos em outros ciclos: a norma existe, mas a corrida para aproveitar a janela vem antes da sua entrada em vigor.”

Mesmo assim, no ano passado, o Master já preocupava as autoridades monetárias. Segundo reportagem da revista piauí, o Banco Central convocou os dirigentes do Banco Master para uma reunião urgente, exigindo a interrupção das operações arriscadas e um aumento de capital de R$ 2 bilhões. Segundo a matéria, o banco foi alertado de que, caso não cumprisse essas exigências, poderia ser liquidado, com os donos tendo seu patrimônio congelado e sendo proibidos de operar no mercado.

No mês passado, o jornal O Globo revelou que a Polícia Federal já investigava o Master desde 2024 por suposta fraude na precificação de precatórios. Um fundo vinculado ao banco teria comprado precatórios por valor inferior e os vendido de volta ao próprio Master por até 235% do valor de face, inflando artificialmente os ativos registrados no balanço. Esse tipo de operação supostamente indicaria tentativa de mascarar a real qualidade do crédito da instituição.

‘Ninguém solta a mão de ninguém’

A possível quebra do Master não é motivo de preocupação apenas para o FGC. Outros casos mostram como crises como essa podem deixar um rastilho de pólvora e incendiar a confiança em todo o sistema financeiro. Um exemplo é o caso do Banco Santos, que em novembro de 2004 sofreu intervenção do Banco Central após a constatação de irregularidades: a liberação de crédito estava condicionada à aplicação em papéis de empresas do próprio grupo econômico, controlado por Edemar Cid Ferreira. Assim, os balanços eram maquiados e o banco ocultava prejuízos bilionários. A falência foi decretada em setembro de 2005, mas, quase duas décadas depois, o processo ainda não foi concluído. A dívida total da massa falida do Banco Santos ultrapassa R$ 16 bilhões, e os credores enfrentam um labirinto jurídico para recuperar valores. É esse tipo de efeito dominó que o mercado teme com o caso Master.

O receio também pode atingir especialmente plataformas que distribuíram CDBs do Master, corretoras como BTG e XP. Embora não sejam responsáveis pela emissão, as distribuidoras se beneficiam da intermediação e da confiança dos clientes na curadoria dos produtos ofertados. Investidores impactados poderiam buscar resgates imediatos, o que geraria uma corrida por liquidez e pressão sobre o sistema. Além disso, poderiam surgir ações judiciais e queixas aos reguladores, alegando omissões ou falta de transparência. Para fontes ouvidas pelo JOTA, “faltou diligência também de quem distribuiu” os papéis do Master.

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Não seria a primeira vez. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) analisou um recurso de um investidor que alegou ter sofrido prejuízo de R$ 110 mil devido a uma operação estruturada recomendada por um preposto da plataforma XP. O investidor afirmou não ter sido adequadamente informado sobre os riscos envolvidos e que a operação era incompatível com seu perfil conservador. A CVM decidiu pelo ressarcimento — mas a decisão foi posteriormente anulada no Judiciário.

Fintechs e bancos digitais, que operam com lógicas de captação garantida, também podem ser afetados. No início do mês, a Associação Brasileira de Internet (Abranet), que representa fintechs como Mercado Pago e PicPay, publicou uma nota afirmando que o Fundo Garantidor de Crédito é um instrumento “fundamental” para a “democratização do acesso a produtos financeiros” a brasileiros, e que qualquer alteração nele “exige discussões amplas com a sociedade, de forma a não ameaçar a pluralidade do sistema financeiro”. 

Assim, ao adquirir ativos judiciais de liquidez incerta do Banco Master, o BRB não estaria apenas incorporando um banco — mas sendo uma espécie de “tábua de salvação” para o sistema, costurada politicamente. Vorcaro, no entanto, disse, à piauí, que essa interpretação é um “absurdo” e “ataques dos concorrentes que não se conformam com o crescimento do Master”. 

E agora, quem irá nos defender?

O movimento ecoa, em escala menor, o modelo de resgate de instituições financeiras usado nos anos 1990 com o Proer, programa federal de estímulo à reestruturação do sistema bancário, duramente criticado porque o governo, com dinheiro de contribuintes, acaba injetando capital para reestruturar operações — indiretamente “recompensando” banqueiros e administradores, que não sofrem perdas. Na época, bancos em risco foram socorridos com recursos públicos em troca de reorganização e venda de ativos problemáticos – a divisão conhecida entre “good bank” e “bad bank” internacionalmente, e prevista na lei brasileira com o Regime de Administração Especial Temporária (RAET).

Segundo reportagens da Folha de S.Paulo revelaram que o banqueiro André Esteves, do BTG Pactual (um dos grupos que distribuiu CDBs do Master em sua plataforma) e o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ex-ministro da Casa Civil, estariam atuando nos bastidores para viabilizar a venda do Master ao BRB. Segundo a Bloomberg, os irmãos Joesley e Wesley Batista, pela holding J&F, chegaram a negociar alguns ativos do Master, mas desistiram. Segundo fontes do mercado, o BTG poderia assumir os ativos mais problemáticos, “bad bank”. “Não temos interesse particular em nenhum negócio ou ativo do Banco Master, mas, dependendo do que acontecer, se houver ativos disponíveis no mercado e de acordo com os objetivos dos reguladores, podemos ajudar nesse processo. Ajudando tanto reguladores quanto sistema financeiro”, disse o CFO do BTG, Renato Cohen, em uma call com jornalistas. Também segundo a Folha, o banco Itaú, no entanto, seria mais resistente ao acordo, defendendo uma saída mais “pedagógica” para evitar problemas semelhantes no futuro. 

Se o Banco Master realmente quebrar, o Banco Central hoje pode atuar em outros dois regimes, além do RAET, para lidar com bancos em dificuldades. Uma delas é a intervenção, considerada mais drástica. Nela, o Banco Central afasta os dirigentes da instituição e nomeia interventores para assumir a administração. Em tese, o objetivo seria reestruturar o banco e tentar recuperar sua operação. Mas, na prática, isso nunca aconteceu no Brasil. Com a intervenção, os depósitos dos clientes são congelados — o que afeta profundamente a confiança, e, na prática, representa a morte da instituição.

Assim, a maioria dos bancos entrou, após a intervenção, no segundo regime, o de liquidação, isto é, falência. Nessa etapa, o Banco Central fecha o banco e inicia um processo para vender seus ativos e pagar os passivos (dívidas com credores e clientes). O objetivo é encerrar a instituição da forma menos danosa possível, mas não há tentativa de salvar a operação.

Daqui pra frente

Também no front político, a senadora Leila Barros (PDT-DF) solicitou que a compra pelo BRB fosse debatida na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado. O pedido foi aceito, e a audiência havia sido marcada para esta quarta-feira (21/5), mas foi cancelada. A operação ainda depende de aprovação do Banco Central, do Conselho Monetário Nacional e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para ser concluída. As instituições têm 360 dias para analisar o negócio.

BRB e Banco Master solicitaram ao Cade que a operação fosse analisada sob rito sumário, argumentando que a transação não implicaria eliminação da concorrência nem criação de posição dominante no mercado.

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Já no Banco Central, uma série de critérios como capacidade financeira do comprador e plano de negócios é analisada. Um dos requisitos é também a conformidade prudencial: é preciso demonstrar que o novo grupo manterá os índices de capital e liquidez exigidos, como a Basileia. O presidente do BC, Gabriel Galípolo, afirmou que a autarquia está avaliando a viabilidade econômica da operação.

O BRB já reestruturou a primeira proposta enviada ao BC, revisando o escopo da aquisição para incluir apenas os ativos mais estratégicos e financeiramente sólidos do Banco Master. Os ativos de maior risco e menor liquidez, estimados em cerca de R$ 33 bilhões, permanecerão fora do negócio, à la RAET. Paralelamente, o Fundo Garantidor de Créditos estaria se preparando para aprovar uma linha de assistência de liquidez ao Master, a pedido do próprio banco.

Além disso, segundo notícia publicada pelo Valor Econômico, o BRB foi questionado pela CVM sobre a suposta contratação de um serviço de “fairness opinion” para avaliar a aquisição da fatia do Master. É um dos passos do processo de transação de fusão e aquisição. Na resposta à CVM, o banco afirmou que “está conduzindo um processo preliminar de levantamento de cotações com empresas especializadas nesse tipo de avaliação, mas que até o momento não recebeu propostas nos valores mencionados, tampouco concluiu o processo de seleção ou firmou qualquer contrato”.

Reformas 

Com as fragilidades expostas pelo caso, os reguladores podem enfrentar maior pressão por reformas. Segundo reportagem do Valor Econômico, os grandes bancos estão pressionando as autoridades para alterar as regras do FGC. Em 2023, o Banco Central determinou que a instituição financeira que ultrapassar 75% da captação garantida pelo fundo deveria pagar uma contribuição adicional, de 0,01% sobre o valor dos depósitos garantidos. Com o caso Master, há a pressão de instituições maiores para que esse teto caia para 50% e que a alíquota da contribuição adicional suba para 0,10%.

O BC também já anunciou que fará uma revisão do tamanho e das regras do FGC em 2026, apesar de não citar explicitamente o caso Master como propulsor das mudanças. “Minha impressão é que o FGC deveria avaliar o risco de cada instituição participante do sistema e limitar o tamanho do seguro oferecido, por exemplo em função do patrimônio líquido da instituição”, diz Werlang, da FGV. 

Outra possibilidade de reformar o fundo seria limitar a garantia oferecida em casos de “super CDBs”, como os ofertados pelo Master, em que a diferença acima do CDI ultrapassar determinado valor, diz o professor. Nesse caso, destaca Werlang, seria importante considerar que o rendimento acima do CDI (o chamado “spread”) não é composto apenas pelo que o banco está efetivamente oferecendo. Parte desse valor costuma ser destinado às corretoras e plataformas de investimento, como forma de comissão pela venda dos produtos. Por isso, para avaliar se um banco está, de fato, pagando uma taxa elevada para captar dinheiro, o que pode indicar maior risco, seria preciso descontar esse custo de distribuição.

O Tribunal de Contas da União (TCU) também determinou uma auditoria sobre a atuação do BC na supervisão de CDBs garantidos. No legislativo, o governo deve dar prioridade, segundo reportagem do Broadcast, ao Projeto de Lei 281/2019, apresentado ainda na administração anterior, de Jair Bolsonaro. O texto prevê a criação de mecanismos para aumentar as ferramentas em caso de instituições em dificuldade, como outros fundos garantidores de crédito e um fundo de resolução.

A necessidade de alterações da regulamentação e endurecimento da fiscalização, no entanto, não é unanimidade – e talvez o problema não esteja nessas frentes. “O que aconteceu com o Master não é representativo do sistema como um todo”, afirmou ao JOTA um advogado experiente em operações bancárias. Para Jefferson Alvares, procurador do Banco Central, o caso do Banco Master não revela uma falha normativa, mas um dilema sobre como e quando intervir. “As regras existem. A supervisão existe. Mas, às vezes, você está vendo o problema, tem todos os dados na sua frente, e precisa decidir se age agora ou monitora mais um pouco.”

A autarquia envia projeções e alertas periódicos às instituições financeiras, inclusive com cenários adversos, e essas ferramentas são usadas preventivamente para mapear riscos crescentes — um sistema que funciona bem, segundo vários operadores jurídicos da área bancária ouvidos pelo JOTA. Para Sergio Werlang, “é preciso que o BC possa (e faça isto na prática) intervir em uma instituição assim que observado que o capital caiu abaixo do mínimo de Basileia III”, diz. “Não há nenhuma razão para esperar que o patrimônio líquido fique negativo.” 

Isso não significa que o caso não deixa de jogar luz sobre possíveis aperfeiçoamentos, principalmente na modernização das opções para crises, como o RAET, a liquidação e a intervenção. A falta de arcabouço para esses momentos do lado do BC fez com que o FGC ficasse sobrecarregado nesses casos — como está hoje com o caso Master, diz Jefferson Alvares, e o primeiro passo para mudar esse cenário pode ser o Projeto de Lei 281/2019.

Atualmente, o espaço para atuação do BC nesses casos é limitado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que o estabelece como prestamista de última instância, isto é, como uma instituição que pode emprestar dinheiro a bancos em apuros para evitar o colapso. Isso significa que o BC pode emprestar dinheiro emergencial por somente até um ano, com garantias reais e para instituições solventes.

Depois da crise financeira de 2008, que mostrou como o colapso de grandes bancos podia arrastar economias, vários países reformaram suas legislações para criar instrumentos de intervenção bancária, conhecidos como “resolution tools”. O Brasil não adotou plenamente essas ferramentas. “A gente precisa de um arcabouço legal alinhado com os princípios internacionais de resolução bancária”, diz Jefferson Alvares.

O país não conta, por exemplo, com mecanismo de bail-in, também conhecido como recapitalização interna. Com esse processo, existente em países como EUA e na Europa, se um banco quebra, a autoridade pode obrigar os próprios credores e acionistas a arcar com parte das perdas, convertendo dívidas em capital. Isso evita o uso de dinheiro público e preserva o funcionamento do banco. “A principal lição da crise financeira global foi que essas pessoas têm que sofrer perdas”, diz Alvares. “Do contrário, vai se perpetuar no sistema uma cultura de tomada de risco excessiva, uma vez que os controladores, os administradores não sofrem consequências pelos seus atos de má gestão.”

Enquanto isso, o futuro do Banco Master permanece nebuloso. Paralelamente à aquisição por parte do BRB, pendente de aprovações regulatórias, as investigações do Ministério Público e da Polícia Federal continuam em curso. Paralelamente, a pressão de players maiores por mudanças no arcabouço prudencial pode se intensificar. Agora, o futuro do Master — e do sistema bancário — dependerá de decisões políticas, regulatórias e de mercado que vão muito além de balanços contábeis.

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