Neste mês de maio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) completa 25 anos de vigência. Os avanços ao longo desse período são inegáveis: a lei criou uma cultura de transparência e responsabilidade e possibilitou um maior controle nas finanças públicas.
Mas toda lei responde às necessidades do seu tempo. Passadas duas décadas e meia, alguns novos desafios exigem a atualização da legislação – especialmente no que se refere à sua aplicação às estatais não dependentes.
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De fato, algumas realidades negociais não estavam presentes no Brasil quando da edição da lei – é o caso, por exemplo, das parcerias público-privadas que surgiram posteriormente. É o caso também de uma complexa realidade negocial que caracteriza hoje a atuação empresarial de algumas empresas estatais.
Uma estatal dependente[1], como o próprio nome diz, depende dos recursos públicos oriundos dos tesouros dos respectivos entes da Federação. Nada mais natural que estejam sujeitas às normas de gestão e responsabilidade fiscal. A dependência dessas empresas aproxima o seu regime orçamentário e financeiro do aplicável às entidades de direito público. Estão sujeitas, portanto, integralmente à LRF.
Já as estatais não dependentes não precisam de recursos diretos do orçamento público, por disporem de fontes próprias de receita para cumprir suas finalidades. Não dependem, portanto, de verbas do ente federativo que as criou. Por não representarem, em regra, um risco fiscal imediato, há amplo debate acerca da própria aplicabilidade da LRF a tais entidades.
Independente do posicionamento sobre essa discussão, o fato é que não parece razoável aplicar indistintamente o mesmo tratamento a uma empresa autossustentável financeiramente e a uma que depende de verbas do ente público. Até mesmo o regime constitucional orçamentário aplicável às duas é completamente distinto – fato que já foi inclusive ressaltado algumas vezes pelo Tribunal de Contas da União (TCU). [2]
No entanto, alguns dispositivos da LRF parecem não observar esta heterogeneidade. É o caso, por exemplo, do art. 40, que veda às empresas estatais (de forma ampla e indistinta) a concessão de garantia a terceiros, salvo quando se tratar de controlada ou subsidiária sua.[3]
Quando interpretado de maneira literal, o dispositivo parece bem claro: qualquer entidade da Administração Indireta – de forma abrangente – não poderá conceder garantias em operações de crédito externas ou internas (exceto para controladas).
Ocorre que, se à época da edição da LRF não era tão comum a prestação de garantias por estatais, hoje pode-se afirmar que houve uma mudança na realidade negocial de atuação de tais empresas. Para minimizar riscos e partilhar o ônus financeiro dos investimentos, estatais passaram a recorrer, com frequência, a parcerias com o setor privado e estruturas de financiamento sofisticadas.
Esse tipo de atuação envolve diversas operações comerciais complexas e modernas técnicas de financiamento (tais como operações estruturadas, project finance, captação de recursos, consórcios empresariais, dentre outras) que dependem do oferecimento de garantias para parceiros. Em financiamentos de projetos de infraestrutura, por exemplo, é muito comum que o banco condicione a concessão do crédito a algum tipo de prestação de garantia (seja por parte dos acionistas, seja pelos controladores do empreendimento).
Em relação às estatais que atuam em concorrência com o setor privado o prejuízo é ainda maior: técnicas de financiamento das mais variadas são utilizadas em larga escala por empresas privadas – restringir tal possibilidade pode inviabilizar a própria atuação empresarial, em total descompasso com a ideia de tratamento isonômico prevista no art. 173 da CRFB.
Como então compatibilizar o regime jurídico empresarial de entidades que atuam em ambiente concorrencial e com lógica empresarial com algumas prescrições trazidas pela LRF, como a vedação à concessão de garantias?
A resposta à pergunta passa por compreender que “as palavras adquirem sentido pelo respectivo contexto”. [4] A finalidade central da LRF, desde sua origem, está diretamente ligada a uma preocupação de natureza estritamente fiscal: servir como instrumento para controle da dívida pública.
A atuação empresarial das estatais, especialmente das que atuam em mercados competitivos, nunca foi a preocupação da LRF. Isso não significa, evidentemente, que estatais devam ser veículos para a concessão de garantias de forma indiscriminada ou irresponsável.
A atuação de todas as empresas estatais – inclusive as não dependentes – deve observar os princípios constitucionais da administração pública (art. 37 da CRFB/88, com destaque, no caso da concessão de garantias, para o princípio da economicidade), prestam contas ao ente controlador e aos órgãos de controle externo.
Dito tudo isso: a LRF cumpriu e continua cumprindo um papel essencial no equilíbrio das contas públicas brasileiras. Mas, após 25 anos, alguns limites precisam ser reconhecidos, especialmente diante da complexidade institucional e econômica do setor público empresarial.
[1] Segundo a própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a empresa estatal dependente é a empresa controlada que recebe do ente controlador recursos financeiros para pagamento de despesas com pessoal ou de custeio em geral ou de capital, excluídos, no último caso, aqueles provenientes de aumento de participação acionária (Cf. art. 2º, II).
[2] Enquanto os investimentos das estatais não dependentes são descritos no Orçamento de Investimento das Empresas Estatais, conforme o art. 165, § 5º, inciso II da CRFB, o das estatais dependentes é representado por unidades orçamentárias da própria Lei Orçamentária Anual– isto é, não há autonomia orçamentária. O próprio TCU já reafirmou tais distinções, ressaltando a pluralidade de regimes jurídicos que as empresas estatais podem e precisam ter (Acórdão TCU nº 357/2015 e nº 937/2019).
[3] A redação do artigo 40 da LRF é praticamente repetida no art. 96 do Decreto 93872/1986. Posteriormente, o Decreto 7058/2009 promoveu importante alteração na redação do Decreto, possibilitando, ainda, a concessão de garantia por estatais exercentes de atividade econômica em favor de Sociedades de Propósito Específico (SPEs) desde que sejam constituídas pela estatal e desde que a garantia esteja limitada à sua participação no capital social.
[4] A frase é do ex-juiz da Suprema Corte norte-americana, Atonin Scalia.