A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) lançou a consulta pública sobre o Fácil, acrônimo de Facilitação do Acesso a Capital e de Incentivo à Listagens (cf. Consulta Pública SDM 1/2024).
De modo resumido, o Fácil é um regime especial para o acesso de pequenas e médias empresas (PMEs) ao mercado de capitais. Seu principal objetivo é a redução de custos oriundos da obtenção de dois registros: (i) o registro de emissor de valores mobiliários (cf. Resolução CVM 80/2022); e (ii) o registro de oferta pública de distribuição de valores mobiliários (cf. Resolução CVM nº 160/2022).
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Em artigo recém-publicado na Harvard Law School Forum on Corporate Governance, o presidente da CVM, João Pedro Nascimento apresentou o Fácil como uma iniciativa voltada à remoção de obstáculos e à ampliação do acesso ao mercado de capitais por empresas de menor porte.
A proposta dá continuidade a iniciativas anteriores, como o lançamento do segmento Bovespa Mais pela B3 (2005), concebido para facilitar a entrada de companhias menores no mercado público por meio de condições diferenciadas. Só que a baixa adesão ao modelo evidenciou que seria necessária uma regulação ainda mais flexível para atrair esse perfil de emissor.
A partir do momento em que a PME efetuar a listagem em uma plataforma de distribuição, obterá uma autorização automática para emissão e oferta de valores mobiliários, sem a necessidade de registros adicionais na CVM. Isso é o Fácil.
Mas resta uma ponta solta. A PME emitiu os valores mobiliários e ofertou aos investidores. Até aí tudo bem. Só que esses investidores posteriormente terão interesse em negociar tais valores mobiliários no mercado secundário.
Nesse sentido, para ampliar a democratização do acesso ao mercado de capitais, o próximo passo é a revisão das normas que regem a negociação de valores mobiliários no mercado secundário – no caso, as regras aplicáveis às entidades administradoras de mercado organizado (cf. Res. CVM 135/2022) e às demais infraestruturas necessárias para a negociação, como os depositários centrais (cf. Res. CVM 31/2022), custodiantes (cf. Res. CVM 32/2022) e escrituradores (cf. Res. CVM 33/2022).
Trata-se de uma questão já antecipada pela CVM no edital da Consulta Pública do Fácil, no qual foi destacado que a autarquia “também avalia a possibilidade de propor um segundo ambiente regulatório de caráter experimental, com foco em possíveis dispensas aplicáveis a ambientes de mercado organizado com menor volume de negociação e em arranjos alternativos menos onerosos no tocante ao papel de infraestruturas de mercado necessárias nesses casos”.
Ato contínuo, a Agenda Regulatória CVM 2025 destacou a “Revisão das Resoluções CVM 135 e 31 com foco em mercados menores e tokenização”.
A menção à tokenização evidencia que a tecnologia será o eixo central da reforma proposta. Assim como a redistribuição de responsabilidades entre a plataforma de distribuição e a CVM representa o grande diferencial do Fácil, a tokenização desponto como o principal instrumento na revisão das regras aplicáveis ao mercado secundário.
A tokenização nada mais é do que a representação digital de ativos – os chamados tokens – em uma infraestrutura cujas transações são executadas e armazenadas por meio de tecnologias de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies – DLTs), a exemplo da blockchain.
Uma das primeiras manifestações da CVM a esse respeito consta no Parecer de Orientação 40/2022. Ali, o regulador ressaltou que “a utilização de DLT (Distributed Ledger Technology), ou qualquer outra tecnologia na emissão, não descaracteriza a natureza do título enquanto valor mobiliário”.
Portanto, desde que o token apresente características de um valor mobiliário (cf. art. 2º da Lei 6.385/1976), fica submetido à competência de um regulador estatal específico, a CVM, inclusive para a negociação em mercado secundário. O Parecer de Orientação 40/2022 esclareceu o tema nos seguintes termos:
“[A] admissão à negociação secundária de qualquer valor mobiliário, inclusive aqueles representados na forma dos criptoativos, deve ocorrer em mercados organizados que possuam autorização da CVM, nos termos da Resolução CVM 135/22.
Deve-se observar, ainda, a aplicabilidade das normas relacionadas à:
(i) prestação de serviços de depósito centralizado de valores mobiliários;
(ii) prestação de serviços de compensação e liquidação de valores mobiliários; e
(iii) prestação de serviços de escrituração de valores mobiliários e de emissão de certificados de valores mobiliários”.
Por outro lado, o uso da tokenização como suporte tecnológico pode ter impacto no funcionamento das infraestruturas de mercado financeiro (IMF). Assim ocorre porque tecnologias como a blockchain facilitam certos procedimentos, como a verificação da existência do ativo, sua titularidade e a possibilidade de sua utilização.
Por isso, a tokenização poderá redefinir os papéis de atores tradicionais das infraestruturas do mercado de valores mobiliários, em especial dos que atuam na cadeia de pós-negociação. É o que se vê, aliás, em duas experiências baseadas em tokenização em curso no âmbito da CVM, o mercado de crowdfunding (cf. a Res. CVM 88/2022 c/c Ofícios Circulares CVM/SSE 04 e 06/23) e o sandbox regulatório (cf. Res. CVM 29/2021 c/c Del. CVM 874/2021).
Nas ofertas de tokens via crowdfunding, a plataforma de distribuição pode assumir as atribuições inerentes ao escriturador, dispensando sua contratação e permitindo o controle de titularidade do valor mobiliário por intermédio dos registros na rede blockchain. Por outro lado, a Resolução CVM 88/2022 veda a atuação das plataformas como entidades administradoras de mercado organizado e, por conseguinte, inviabiliza a negociação dos tokens em mercado secundário.
No âmbito do sandbox regulatório, a CVM aprovou projetos que envolviam a tokenização de ações e sua posterior admissão à negociação em mercado secundário. Exemplo disso é o mercado da BEE4 em que a plataforma, na condição de entidade administradora de mercado organizado, assume as atribuições do depositário central, enquanto as atribuições do escriturador são mantidas e alocados a um terceiro contratado.
O fato de que a Agenda Regulatória CVM 2025 indicou a revisão da norma aplicável aos depositários centrais (Res. CVM 31/2022), de forma combinada à revisão daquela aplicável às entidades administradoras de mercado organizado (Res. CVM 135/2022), nos permite considerar como principal alternativa o arranjo no qual a plataforma assume funções típicas do depositário central com o auxílio da tokenização na representação dos valores mobiliários.
A Consulta Pública a ser lançada discutirá a compatibilização das atividades típicas que ocorrem na pós-negociação, em especial no âmbito do depósito centralizado, com o uso das redes de registro distribuído, o que inclui discussões sobre (i) a titularidade e o controle da movimentação dos valores mobiliários tokenizados; (ii) a manutenção de contas individualizadas por meio de wallets; (iii) o acesso de escrituradores e custodiantes como participantes da rede; (iv) os deveres e responsabilidades da plataforma pelo funcionamento da rede.
Embora muitos dos termos e conceitos ainda sejam pouco familiares, o Instituto Brasileiro de Finanças Digitais (IFD) se dedicará, nos próximos textos desta coluna, a esclarecer e exemplificar os diversos usos dessas novas tecnologias. Nosso objetivo é que o público leitor se sinta familiarizado a ponto de acompanhar e participar ativamente das discussões que a CVM realizará nos próximos meses.