O amor sob vigilância: a agonia do eros na sociedade da cibercultura

Em um mundo hiperconectado, algoritmizado, onde o tempo parece cada vez mais escasso e a eficiência se tornou um imperativo cotidiano, o amor também parece ter sido absorvido pela lógica do desempenho e da otimização. Aplicativos de relacionamento substituem o acaso pelo algoritmo; redes sociais transformam o desejo em exibição.

Na obra A agonia do Eros, Byung-Chul Han realiza uma profunda crítica ao estado contemporâneo das relações humanas, marcadas pela positividade compulsória, pela visibilidade incessante e pela ausência do outro como alteridade radical. Articulando o pensamento de Michel Foucault, Emmanuel Lévinas, e outros autores, Han diagnostica uma erosão do Eros no mundo digital.

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Neste ensaio, busca-se refletir sobre os impactos da cibercultura nos relacionamentos humanos, com ênfase na dissolução da alteridade, na racionalização do desejo e na substituição do erotismo pelo desempenho e pela autoexploração.

Ou seja, busca-se compreender como a experiência amorosa, quando reduzida a um consumo transparente de informações, acaba por reproduzir a lógica neoliberal de produção incessante e autogerenciamento subjetivo. 

De Foucault ao Instagram: liberdade como autogerenciamento e vitrine de si

Foucault (2006) demonstra que o homo oeconomicus neoliberal emerge em uma sociedade que já não se estrutura pela disciplina, mas pela liberdade governada. Esse novo sujeito, empreendedor de si mesmo, não é mais alguém que obedece, mas alguém que se explora continuamente, guiado por uma ética da autoeficiência. Conforme Han (2017), essa liberdade, antes promessa de emancipação, “serve como danação de ter de explorar eternamente a si mesmo”.

Assim, a subjetividade contemporânea, moldada pela performance[1], pelo controle de si e pela exposição constante, entra em colapso. Colapso este que se manifesta de maneira evidente em contextos como os das redes sociais, onde as pessoas são constantemente convocadas a exibir sua produtividade, sua felicidade, transformando sua intimidade em capital simbólico.

Plataformas como Instagram e Linkedin, por exemplo, tornam-se vitrines de um eu performático em constante estado de vigilância e comparação. O burnout[2], a ansiedade por validação e a depressão digital são sintomas dessa lógica (Primack et.al, 2017), que obriga o indivíduo a ser, ao mesmo tempo o produto, o produtor e o consumidor de si mesmo.

Nesse cenário, a liberdade neoliberal não liberta. O que acontece é o aprisionamento do sujeito em um ciclo contínuo de autoaperfeiçoamento e autoexploração[3], esvaziando – ele e a sociedade como um todo – de interioridade e profundidade, resultando em vínculos humanos empobrecidos.

O amor em agonia: a transparência digital e a dissolução da alteridade

É nesse cenário de colapso da subjetividade moderna[4] que o Eros, entendido como relação radical com o outro, entra em agonia. A crise do sujeito contemporâneo, esvaziado de interioridade e capturado por uma lógica de constante visibilidade, desarticula a possibilidade do encontro erótico autêntico, pois este só se realiza no espaço da alteridade, do mistério, do não-saber.

Han (2017, p.25) observa que o Eros é negatividade: “não-poder-poder”, ou seja, uma experiência que resiste à lógica, à instrumentalização da produção e da dominação. Ao se inspirar em Lévinas (1984, p. 58), o autor enfatiza que o outro — enquanto alteridade irredutível — não pode ser absorvido ou reduzido pelo eu, pela transparência, nem pela racionalidade técnica ou econômica.

No entanto, a cultura digital, com sua promessa de total transparência, acesso ilimitado e previsibilidade algorítmica, destrói essa negatividade fundamental à constituição do desejo. Nas plataformas digitais de relacionamento, por exemplo, o outro é imediatamente transformado em imagem, perfil, dado. Um objeto comparável, quantificável e, portanto, descartável.

Han (2017, p. 63) aponta que a ausência de informação, a opacidade, gera idealização — e é justamente essa idealização que alimenta o desejo. Ao antecipar tudo, a cibercultura sufoca o Eros, substituindo o mistério pela racionalização da escolha afetiva. O desejo torna-se decisão de consumo.

Essa dinâmica, contudo, não é isenta de complexidade psíquica. A autora reconhece que a idealização, embora constitutiva de desejo, pode também funcionar como defesa: uma tentativa inconsciente de reparar feridas emocionais oriundas da infância. Freud (1914), Winnicott (1971) e Bollas (1987), indicam que projetamos no outro tanto o nosso desejo quanto nossas carências primárias. Assim, valorizar o Eros não é romantizar a idealização, mas compreendê-la em sua ambivalência: força criativa que pode, igualmente, impulsionar vínculos e gerar frustração e repetição de traumas.

Afetos algorítmicos: como a lógica tecnocapitalista reprograma o amor

Sem Eros, o amor degenera em uma sensorialidade funcional, em um consumo marcado pela busca imediata de estímulos e gratificações mensuráveis. O desejo cede lugar ao clique, fazendo com que redes sociais, aplicativos de relacionamento e mecanismos de busca, como o Google, Tinder ou Instagram, produzam relações “aditivas ou detectivas” (Han, 2017, p. 88), mas não narrativas significativas.

Perde-se aí a densidade simbólica da experiência amorosa que será inevitavelmente reduzida a dados e padrões estatísticos. Esgota-se a teoria enfraquecendo a imaginação e impedindo a construção de uma ética relacional baseada na incerteza e no risco. Não mais existe a hermenêutica dos afetos, da descoberta, do desconhecido…

O que existe agora é a supremacia da razão instrumental orientada apenas pela eficácia e pelo desempenho. A espera é trocada pelo scroll, a reciprocidade pela usabilidade.

Assim, a partir desse novo regime, os relacionamentos transformam-se em produtos comparáveis e trocáveis, organizados pela lógica do mercado, mesmo que de forma inconsciente. A cupidez — “cupidez pelo outro”[5] (Han, 2017, p. 67) — é neutralizada, apagando o potencial subversivo do Eros. Afinal, o Eros, segundo Han, representa a fidelidade ao porvir, desejo de transformação radical.

Nas palavras de Eva Illouz (2011), o amor tornou-se um espaço em que o capital simbólico e os códigos da racionalidade econômica impõem-se sobre a experiência, impedindo que a vulnerabilidade e o não saber cumpram seu papel formativo e ético. Assim, a morte do Eros revela-se não como uma exceção, mas como o sintoma mais agudo de uma era marcada pela exaustão da subjetividade e pela colonização neoliberal dos afetos.

Reencantar o amor: Eros como resistência ética e política na cibercultura

A agonia do Eros na cibercultura, então, não é apenas um drama íntimo, mas é sinal de um tempo em que o outro se tornou inconveniente, e o amor, uma questão de desempenho. A reflexão de Byung-Chul Han denuncia com lucidez o empobrecimento das relações humanas nesse contexto.

O amor, reduzido a algoritmo, perde sua força subversiva e sua dimensão ética. A agonia do Eros é, antes de tudo, a agonia do outro — daquilo que nos desinstala, que nos obriga a sair de nós mesmos. Parece que ninguém tem mais tempo a perder e, portanto, ninguém se permite conhecer o outro. Caso um candidato na “prateleira” não preencha um dos requisitos, está automaticamente descartado e sempre haverá um próximo.

No entanto, reconhecer essa crise não implica aceitar sua irreversibilidade. É justamente no esgotamento da positividade que pode surgir a possibilidade de retomada do negativo: da espera, do risco, do não-saber, da tolerância, do entender, do conhecer e do mistério. Resta, portanto, resgatar o Eros como fidelidade ao porvir, como abertura àquilo que não se deixa capturar por sistemas de controle. E esse movimento pode constituir um gesto ético e político.

Resistir à lógica da equivalência e da performatividade relacional exige, portanto, reaprender a estar com o outro de modo não instrumental, a sustentar o desconforto da alteridade e a reencantar a experiência amorosa como linguagem, narrativa e descoberta.

Talvez o Eros, ainda que em agonia, nos convoque à tarefa mais urgente do presente: reimaginar os modos de viver, de amar e de habitar o tempo em uma era de algoritmização, ou melhor, de exaustão. Assim, amar “de verdade” pode ser o último gesto verdadeiramente humano e revolucionário.


FOUCAULT, Michel. Die Geburt der Biopolitik: Geschichte der Gouvernementalität II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2006.

HAN, Byung-Chul. A agonia do Eros. Tradução de Jeong-Hwan Koo. Petrópolis: Vozes, 2017.

ILLLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

LÉVINAS, Emmanuel. Die Zeit und der Andere. Hamburg: Meiner Verlag, 1984.

OPAS. CID: burnout é um fenômeno ocupacional. Washington, D.C.: Organização Pan-Americana da Saúde, 2019. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/28-5-2019-cid-burnout-e-um-fenomeno-ocupacional. Acesso em: 1 maio 2025.

PEW RESEARCH CENTER. Teens, Social Media and Mental Health. Washington, D.C., 2022. Disponível em: https://www.pewresearch.org/internet/2025/04/22/teens-social-media-and-mental-health/#:~:text=About%20half%20of%20teens%20(48,28%25%20vs.%2011%25). Acesso em: 1 maio 2025.

PRIMACK, B. A. et al. Social media use and perceived social isolation among young adults in the U.S. Computers in Human Behavior, [S.l.], v. 66, p. 1–9, 2017. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0747563216307440?via%3Dihub . Acesso em: 1 maio 2025.

TURKLE, S. Alone together: why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2011.

[1] Pesquisas do Pew Research Center (2022) revelam que adolescentes e jovens adultos relatam sentimentos recorrentes de “não serem bons o suficiente” ao se compararem com os perfis idealizados de outras pessoas nas redes sociais.

[2] Segundo a Organização Mundial da Saúde (OPAS, 2019), desde 2019 o burnout é classificado como um fenômeno ocupacional associado ao estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso. Em ambientes digitais de alta performance, como o empreendedorismo digital ou a gig economy, isso se agrava.

[3] A psicóloga Sherry Turkle, no livro Alone Together (2011), aponta que a hiperconexão leva os indivíduos a se moldarem à expectativa do outro digital, vivendo uma identidade fragmentada e performática. Sendo esse o melhor conceito para a autoexploração dentro de um contexto de hiperconectividade.

[4] Busca e molde incessante pela performance, autoexploraçao e exposição compulsiva.

[5] Desejo por aquilo que escapa, que excede.

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