Há muita discussão sobre a qualidade das instituições democráticas, mas pouco sobre quem opera essas instituições: os políticos profissionais. Quando se debate sobre a qualidade da democracia, tendemos a focar em regras e procedimentos — eleições livres e justas, partidos programáticos, separação e equilíbrio entre os Poderes — como se esses elementos funcionassem automaticamente, independentemente dos indivíduos que ocupam o poder.
Nenhum arranjo institucional, por mais bem desenhado, é capaz de assegurar uma boa representação. Esta depende, em última instância, das crenças e condutas dos próprios atores políticos.
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Ainda assim, os principais índices internacionais de qualidade da democracia — como V-Dem, Polity5 e Freedom House — continuam priorizando as instituições. A qualidade dos políticos é quase sempre ignorada ou avaliada de forma subjetiva, com base em opiniões de especialistas.
Diante dessa lacuna, pesquisadoras(es) do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Representação e Legitimidade Democrática (INCT-ReDem) estão construindo um índice inovador para medir a qualidade dos parlamentares.
A partir de uma ampla revisão da literatura sobre elites políticas e representação, reuniram distintas abordagens para estruturar uma métrica multidimensional. O objetivo é ir além de clichês como “são todos corruptos” ou “precisamos de técnicos, não de políticos” e oferecer critérios mais objetivos para avaliar os nossos representantes.
As cinco dimensões da qualidade parlamentar
O índice proposto pelo ReDem se baseia em cinco dimensões complementares que buscam captar, de maneira efetiva, as várias facetas do bom desempenho parlamentar.
- Expertise política
Parlamentares lidam cotidianamente com tarefas complexas — elaborar leis, fiscalizar o Executivo e representar interesses socialmente muito diversos. Conhecimento dos procedimentos legislativos, tanto formais como informais, além do domínio das regras do jogo são condições básicas. Experiência prévia, atuação eficaz em comissões e familiaridade com a dinâmica congressual são, então, indicadores necessários. - Representação descritiva
A legitimidade de um Parlamento também depende de sua diversidade interna. Em sociedades desiguais como o Brasil, a sub-representação de grupos sociais historicamente marginalizados compromete a qualidade representativa. Assim, gênero, raça e origem social são dimensões relevantes para aferir o quanto o Legislativo e os legisladores espelham nossa sociedade. - Representação substantiva
Além de procurar refletir a diversidade da sociedade, parlamentares devem brigar pelos interesses de seus eleitores e buscar o bem comum. A capacidade de equilibrar demandas específicas com pautas de responsabilidade nacional é um sinal de qualidade. Atuação em temas de interesse público e proposições legislativas de relevância geral são, por exemplo, indicadores a serem considerados. - Republicanismo
O compromisso com o interesse público exige evitar o uso do mandato para fins privados. Nepotismo, patrimonialismo e corrupção violam esse princípio. Políticos de qualidade respeitam normas éticas e mantêm distância entre os mundos público e privado. - Falar sincero
Em tempos de desinformação, a disposição para não mentir deliberadamente é uma virtude política fundamental. O bom parlamentar rejeita a mentira deliberada e o uso estratégico da desinformação. Embora existam dilemas sobre comunicação e política, a recusa sistemática em manipular informações é critério essencial para fortalecer a confiança democrática.
Por que medir a qualidade dos políticos importa?
O índice proposto por nós, e que busca reunir essas cinco dimensões, oferece múltiplos usos e vantagens.
Primeiro, permite superar tanto a negligência das abordagens institucionais quanto as simplificações comuns no debate público. Em vez de rótulos genéricos, fornece parâmetros objetivos e transparentes para avaliar a qualidade dos parlamentares.
Segundo, possibilita a realização de análises comparativas. É possível comparar legislaturas ao longo do tempo, medir diferenças entre países ou observar padrões em distintos grupos de parlamentares. Isso abre caminho para pesquisas empíricas que conectem o perfil dos representantes à qualidade da governança e à satisfação dos cidadãos.
Terceiro, o índice pode subsidiar o debate público e orientar reformas institucionais. Discutir alterações nas regras eleitorais, por exemplo, exige clareza sobre qual perfil de parlamentar se deseja promover.
Por fim, nosso índice oferece um instrumento para que a sociedade civil, a imprensa e os próprios eleitores acompanhem e avaliem a atuação dos representantes. Embora não substitua o julgamento político, ajuda a qualificar a discussão pública sobre quem deve nos representar.
O desafio da aplicação
A proposta do ReDem ainda precisa ser plenamente operacionalizada. Definir indicadores objetivos e coletar dados confiáveis para cada dimensão são os próximos passos do nosso projeto. Também será necessário enfrentar dilemas metodológicos. Como avaliar, por exemplo, a sinceridade sem cair em avaliações puramente subjetivas? Como ponderar as cinco dimensões em termos de importância sem hierarquizá-las de maneira arbitrária?
Mesmo com esses desafios e muitos outros, a nossa iniciativa marca um avanço importante na Ciência Política. Em tempos de crise de representação e desconfiança nas instituições, qualificar o debate sobre a atuação política é tarefa urgente. Afinal, avaliar a democracia exige não apenas olhar para as regras do jogo, mas também para quem está em campo e como joga com elas.