Tanto no âmbito do processo judicial como do processo administrativo fiscal se percebe uma ânsia justificada por eficiência, embalada pela necessidade de uma prestação jurisdicional eficiente e eficaz. Afinal, se a justiça nunca chega ou não é para todos, não é justiça.
Se dosada, a urgência é saudável. Mas estará sempre presente o risco de que o burocrata invente soluções que resolvem um problema apenas aparente, quando na prática apenas agrava o verdadeiro problema, além de criar outros ainda piores. No dizer popular, não é inteligente limpar a banheira jogando fora a criança com a água suja.
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Este paradoxo pode ser observado na atual conformação do contencioso de pequeno valor, introduzido no processo administrativo fiscal federal pelo art. 23 da Lei 13.988/2020, incluído quando da conversão da Medida Provisória 899/2019.
A finalidade burocrática era declaradamente[1] a de reduzir o estoque de processos administrativos, diminuindo a quantidade de recursos em tramitação no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), enquanto tribunal administrativo de segunda instância, o que se buscou remediar limitando a tramitação das discussões de pequeno valor no âmbito das Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ), que historicamente desempenham a função de tribunal administrativo de primeira instância, mas que passaram a ter seus órgãos internos remanejados de maneira a funcionarem como primeira e segunda instâncias em relação ao contencioso de pequeno valor.
A criação de um valor de alçada, por si mesmo, não representaria nenhuma novidade, inclusive porque tal critério já é utilizado pelo Poder Judiciário de variadas maneiras, merecendo destaque a própria criação dos Juizados Especiais Federais.
O problema, em qualquer dos dois âmbitos, reside em assegurar a integridade do sistema jurisdicional, estruturando um sistema de precedentes coeso, capaz de preservar a isonomia e conferir segurança jurídica e, assim, em última instância, proporcionar justiça e paz duradoras.
Ocorre que a forma como se encontra atualmente estruturado o contencioso de pequeno valor, por não contemplar os mecanismos necessários para assegurar a integridade ao processo administrativo fiscal, representa uma ruptura que precisa com urgência ser colmatada.
O art. 23 da Lei 13.988/2020 define como de pequeno valor a discussão “cujo lançamento ou controvérsia não supere 60 salários mínimos” (inciso I), estabelece que em tais casos o julgamento de última instância será realizado pela DRJ (parágrafo único), confere ao ministro de Estado competência para a regulamentação, exigindo observância aos “princípios da racionalidade, da economicidade e da eficiência” (caput), e que também sejam “observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais“ – é neste último ponto que reside o problema, ou a solução: no que consiste tal vinculação aos entendimentos do Carf?
A questão se desdobra em duas: a primeira, definir se todos os precedentes do Carf devem ser observados pela DRJ; a segunda, partindo da hipótese de a DRJ manifestar entendimento que colide com o do Carf, consiste em identificar por meio de qual mecanismo se resolverá tal divergência ou se fará valer tal vinculação.
A regulamentação pelo ministro de Estado veio com a Portaria 20/2023, que passou a contemplar o Rito Especial para o Contencioso Administrativo Fiscal de Pequeno Valor, estabelecendo duas instâncias internas dentro da estrutura das DRJ: a primeira atuando por meio de julgamentos monocráticos (art. 3º, II) e a segunda por meio de colegiado, para o julgamento dos recursos contra as decisões monocráticas (art. 3º, III). Quanto às demais controvérsias, que superam 60 salários-mínimos, foi mantida a estrutura ordinária de julgamento: de primeira instância por órgão colegiado da DRJ, sujeita a recurso para julgamento de segunda instância pelo Carf.
No que se refere à vinculação aos entendimentos do Carf, a portaria do ministro especificou que o efeito vinculante se limitaria às súmulas e às resoluções de divergência proferidas pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), órgão que atua na eliminação de divergência entre precedentes do Carf (art. 53 da Portaria MF 20/2023).
Sem adentrar numa análise mais profunda quanto às margens de interpretação em torno da expressão vinculação aos entendimentos do Carf[2], fica claro que a portaria solapou qualquer preocupação em criar um sistema coeso de precedentes, não lhe interessando a uniformização de entendimentos, preferindo a verve simplista e automatizada de enfatizar um certo efeito vinculante, atribuindo-o a determinados tipos de decisão.
Malgrado os problemas de tal opção, é de se reconhecer que pelo menos houve a regulamentação de tal aspecto pela portaria.
Mas a portaria nada disse quanto ao encaminhamento a ser adotado para fazer valer a referida vinculação, nos casos em que o julgamento da DRJ venha a colidir com o entendimento do Carf.
Aliás, vale lembrar que, pelo menos hipoteticamente, tal solução interessa tanto ao contribuinte quanto ao fisco, visto que ambos podem receber uma decisão da DRJ, contrária ao seu interesse, mas que colide com entendimento do Carf que lhe seria favorável.
Com efeito, não há na lei, nem na portaria, qualquer previsão de recurso ou de outro mecanismo processual destinado a fazer valer a vinculação aos entendimentos do Carf, colmatando a colisão do entendimento por parte da DRJ.
Tal como ocorre em relação aos conselheiros do Carf que deixarem de observar as súmulas e resoluções de uniformização de teses divergentes do próprio Carf (art. 16, III, da Portaria MF 20/2020), há o risco de perda do mandato do julgador, sem que no entanto haja previsão específica em relação ao julgador da DRF, restando apenas o mecanismo genérico de representação aos órgãos de correição funcional contra o servidor (art. 9º da Portaria MF n. 492/2013).
De qualquer forma, o resultado da denúncia em face da conduta do julgador, mesmo resultando na perda do mandato, não terá qualquer efeito prático em relação ao contribuinte e ao efeito concreto de fazer prevalecer a vinculação ao entendimento do Carf, visto que os órgãos de correição funcional não têm atribuição de julgamento do crédito tributário.
Restaria ao contribuinte a busca de tutela jurisdicional, com a propositura de medida judicial para obrigar o julgador a se pronunciar expressamente e fazer prevalecer a vinculação ao entendimento do Carf, por violação do art. 23 da Lei 13.998/2020, inclusive pugnando pela manutenção dos efeitos do processo administrativo fiscal, com a suspensão da exigibilidade do tributo, até que ultimada tal deliberação.
Outrossim, se o contribuinte já se viu na contingência de propor uma ação judicial, por que não discutir desde logo o mérito perante o Poder Judiciário?
Sob a perspectiva da macrolitigância, portanto, tem-se o esvaziamento do escaninho do contencioso administrativo à custa da transposição dos litígios para a esfera judicial, acompanhado do potencial de multiplicação de medidas judiciais na tentativa de conferir integridade e racionalidade ao processo administrativo fiscal.
Pior: acaba-se dando um tratamento mais prejudicial justamente a quem é mais frágil, cerceando a defesa daqueles contribuintes que mais precisariam de proteção, em relação a litígios cujo valor reduzido teria lugar precisamente no contencioso administrativo, justamente porque se tornaria excessivamente oneroso, ao ponto de ser inviável, levar a discussão adiante no Poder Judiciário.
Assim, o burocrata consegue reduzir o acervo de litígios administrativos ou os transformando em litígios judiciais ou, o que é pior, à custa da hipossuficiência do contribuinte e da imposição de um sobrecusto justamente para litígios cujo valor torna economicamente inviável levar a discussão para a via judicial.
Em síntese, portanto, além de não se aproveitar a oportunidade para a criação de um sistema de precedentes eficaz em âmbito administrativo – que fosse capaz de legitimar as decisões de instância única na DRJ –, na linha do que se vem buscando arduamente no processo judicial, a forma como foi regulamentado o contencioso de pequeno valor implicou a quebra da integridade do processo administrativo fiscal no âmbito federal, ao acarretar a coexistência de duas trilhas processuais que funcionam paralelamente, sem nenhum mecanismo para assegurar a uniformidade e a previsibilidade da jurisdição administrativa.
A ausência de tal mecanismo permite que haja decisões finais antagônicas, a depender do valor da causa, com evidente quebra de isonomia, em prejuízo justamente aos contribuintes e às causas que mais precisariam do contencioso administrativo, com a consequente perda segurança jurídica e da confiança do contribuinte e da sociedade.
Há várias soluções possíveis, que podem ser implementadas de diferentes maneiras, diretamente em âmbito regulamentar, infralegal.
Pode haver a previsão de uma reclamação diretamente para a Câmara Superior de Recursos Fiscais, demonstrando a violação à vinculação ao entendimento da Súmula ou do julgamento em recurso de divergência. Outra possibilidade é a criação de uma Turma de Uniformização dedicada exclusivamente a julgar recursos com fundamento na falta de observância da vinculação aos entendimentos do Carf, a qual pode compor a estrutura da própria DRJ.
Uma premissa necessária, em qualquer hipótese, será a de criar mecanismos que exijam do julgador da DRJ que enfrente expressamente a alegação de falta de observância da vinculação aos entendimentos do Carf, na linha do que é previsto pelo Código de Processo Civil vigente para reclamar dos juízes o pronunciamento a respeito da aplicação de sumulas e precedentes vinculantes (como servem de exemplo os arts. 189, §1º, VI, e 1.022, p.u., I, do CPC).
Não se pode admitir o prolongamento da presente situação de ausência de mecanismos mínimos de uniformização de entendimento do contencioso administrativo federal, por implicar flagrante desrespeito à igualdade de solução que deve haver entre causas de maior ou de menor valor, o que traz consigo a possibilidade de um odioso tratamento discriminatório entre contribuintes de maior ou menor capacidade econômica, em franco prejuízo àqueles com menor capacidade de se defender!
[1] BRASIL. Comissão mista para apreciação da medida provisória n. 899, de 2019, que “dispões sobre a transação nas hipóteses que especifica”. Parecer (CN) n. 1, de 2020. Distrito Federal : Congresso Nacional. 2020.
[2] A respeito deste tema específico e de outros relacionados ao contencioso de pequeno valor: ALLEGRETTI, Ivan. DELIGNE, Maysa Pittondo. A influência do CARF no contencioso de pequeno valor. In Coletânea 100 anos do CARF. (OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de. PURETZ, Tadeu. Coord). São Paulo, SP: NSM Editora, 2024. VETTORATO, Gustavo. A Medida Provisória n. 232/2004 e a contra-isonomia no processo administrativo tributário. SADireito, 27 mar. 2005. Disponível em https://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/21062-21063-1-PB.pdf, acesso em: 14.08.2024. LAURENTIS, Thais de. As cinzas e o processo administrativo fiscal “de pequeno valor”. São Paulo : Consultor Jurídico, 01.03.2023, https://www.conjur.com.br/2023-mar-01/direto-carf-cinzas-processo-administrativo-fiscal-pequeno-valor/#:~:text=Podemos%20assim%20dizer%20que%20a,processo%20administrativo%20fiscal%20nesse%20pa%C3%ADs, acesso em 20.07.2024.