Nos últimos anos, o avanço do controle sobre a atividade administrativa tem exposto uma tensão crescente entre a atuação dos órgãos fiscalizadores e o espaço de autonomia decisória do gestor público e do regulador. Especialmente quando se trata de decisões de cunho técnico ou político, a revisão dessas escolhas por instâncias externas tem provocado instabilidade, retração institucional e o risco de captura das decisões administrativas por órgãos de controle — o que compromete o próprio desenho constitucional da separação de funções estatais.
Foi em resposta a esse cenário que a Lei federal 13.655/2018, ao alterar a LINDB, buscou oferecer uma base normativa mais sólida para a delimitação das competências entre gestores e controladores. Seus dispositivos, especialmente os artigos 20 a 24, funcionam como verdadeiros filtros normativos — ou, em linguagem mais funcional, “failsafes” jurídicos — que impõem testes de responsabilidade, racionalidade e deferência antes que atos administrativos possam ser revistos, modificados ou invalidados pelo controle.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
A lógica subjacente a esses dispositivos é simples, mas poderosa: nem toda divergência interpretativa justifica a revisão de um ato administrativo, e nem todo juízo técnico pode ser substituído por outro sem que se incorra em ativismo indevido. O papel da LINDB, nesse contexto, é propor critérios objetivos que limitem a intervenção do controle e reforcem a estabilidade das relações jurídicas e a confiança legítima nas decisões do Estado.
O primeiro desses filtros está relacionado à natureza da matéria objeto de controle. Se o conteúdo do ato administrativo estiver no campo das escolhas técnicas ou políticas — aquelas que envolvem múltiplas alternativas viáveis do ponto de vista jurídico —, a revisão pelo controle só será legítima se houver manifesta desrazão ou ilegalidade.
Essa ideia, amparada no artigo 22 da LINDB, sustenta que o controle deve reconhecer a presunção de legitimidade das decisões discricionárias do gestor, abstendo-se de substituí-las por preferências interpretativas próprias. Trata-se de um chamado à autocontenção e à deferência institucional.
O segundo filtro diz respeito à análise das consequências práticas da decisão controladora, conforme os artigos 20 e 21. O controlador deve motivar suas decisões considerando os impactos reais que elas produzirão na administração pública e nos administrados. A revisão de um ato que já produziu efeitos ou está vinculado a uma política pública em curso não pode ignorar os custos e os riscos da instabilidade. A função do controle é garantir legalidade e eficiência, não criar novos problemas em nome de uma suposta perfeição normativa.
O terceiro filtro está na proteção da confiança legítima e da estabilidade das relações jurídicas, prevista no artigo 24. Ainda que um novo entendimento jurídico revele a invalidez de atos administrativos passados, os efeitos já produzidos sob orientação anterior não devem ser automaticamente desfeitos. A regra aqui é de não retroação, exceto em situações de evidente má-fé ou lesividade grave ao interesse público. É um reconhecimento de que o direito não deve ser usado para punir escolhas razoáveis feitas em cenários de incerteza.
Por fim, o artigo 23 propõe um modelo de transição razoável sempre que for necessário rever entendimentos ou práticas consolidadas. Esse mecanismo funciona como uma cláusula de modulação de efeitos: se não for possível preservar o ato ou contrato, que ao menos sua revisão se dê de forma proporcional e previsível, evitando rupturas abruptas e prejuízos desnecessários.
Esses quatro filtros — natureza da matéria, análise de consequências, proteção da confiança e regime de transição — estruturam um roteiro normativo que se impõe ao controle externo. Mais do que limitar o controle, eles o qualificam: exigem do controlador uma postura mais criteriosa, responsável e dialogada com a realidade administrativa.
Casos de revisão, por órgãos de controle, de soluções regulatórias adotadas por gestores dentro do seu espaço técnico e contratual, evidenciam os riscos da substituição do juízo do regulador por decisões controladoras baseadas em entendimentos alternativos — ainda que juridicamente possíveis, mas não necessariamente superiores. Quando o controle deixa de operar como instância de legalidade para atuar como gestor substituto, perverte-se sua função e enfraquece-se o próprio Estado administrativo.
A LINDB, nesse sentido, não elimina o controle, mas lhe impõe freios constitucionais e legais. Funciona como uma espécie de sistema antifalha, que obriga o controlador a testar suas decisões contra critérios jurídicos robustos antes de invalidar atos legítimos do gestor. Esses testes reforçam a segurança jurídica e garantem que a atuação do Estado, mesmo quando revisada, mantenha um mínimo de previsibilidade e racionalidade institucional.
A lição que se extrai é clara: não se trata de blindar o administrador da responsabilização ou do controle, mas de assegurar que esse controle seja exercido com responsabilidade, técnica e deferência. Afinal, a boa administração pública não nasce da onipotência do controle, mas do equilíbrio entre autonomia decisória e prestação de contas — e a LINDB pode ser a chave para restaurar esse equilíbrio.