No último dia 21 de abril, faleceu o cardeal Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, deixando vago o cargo de chefe de Estado do Vaticano.
O Vaticano é um Estado bastante peculiar. O menor do mundo em extensão territorial, com 0,44 km2, ocupa área equivalente a 61 campos de futebol, sendo muito menor do que qualquer bairro da cidade de São Paulo[1].
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Apesar de sua dimensão territorial reduzida, o Vaticano exerce expressivo poder político, pois o papa é o líder da religião católica, que atualmente reúne cerca de 1,406 bilhão de fiéis, representando aproximadamente 17,5% da população mundial[2].
O poder financeiro do Vaticano também é altamente significativo, embora difícil de estimar com precisão devido à opacidade de suas finanças e à descentralização em inúmeras organizações espalhadas pelo mundo. Presume-se, contudo, que seu patrimônio esteja entre US$ 10 e US$ 15 bilhões, incluindo mais de 5.000 propriedades em diversos países[3]
As finanças do Vaticano têm uma longa história, por óbvio, confundindo-se com a origem do cristianismo e da Igreja Católica.
Nos primeiros séculos, a Igreja cristã vivia de doações voluntárias e possuía poucos bens. Essa realidade mudou no século 4º, com a legalização do cristianismo por Constantino e as generosas doações imperiais, que permitiram a formação de um vasto patrimônio eclesiástico. Na Alta Idade Média, a Igreja tornou-se grande proprietária de terras, sustentada por doações, isenção tributária e pelos dízimos.
Durante a Idade Média, consolidou-se como a instituição mais rica da Europa, com rendimentos oriundos dos dízimos, propriedades rurais, taxas eclesiásticas e doações votivas. O papado criou estruturas administrativas para gerir seus recursos e combater abusos como a simonia. No final da Idade Média, a venda de indulgências financiou grandes obras, mas gerou críticas, culminando na Reforma Protestante do século 16, que resultou na perda de territórios, fiéis e receitas para a Igreja.
A Contrarreforma buscou restaurar a moralidade e a disciplina eclesiástica, limitando abusos e fortalecendo o controle financeiro da Santa Sé[4]. Nos séculos 17 e 18, o regalismo e o Iluminismo levaram à limitação do poder econômico da Igreja em vários países. Na Revolução Francesa, seus bens foram nacionalizados, e o clero passou a ser sustentado pelo Estado. O movimento napoleônico ampliou essas medidas, enfraquecendo o patrimônio e a autonomia eclesiástica.
O papado ainda governava os Estados Pontifícios, que lhe garantiam recursos até serem tomados pelo Reino da Itália em 1870. Com isso, iniciou-se a “Questão Romana”, encerrada apenas em 1929 com o Tratado de Latrão, que reconheceu o Vaticano como Estado soberano e garantiu uma significativa indenização financeira à Santa Sé. Bem administrado por Bernardino Nogara, esse capital consolidou a base das finanças vaticanas modernas, permitindo à Igreja operar como um investidor global a partir do século 20.
Após o Tratado de Latrão, o Estado da Cidade do Vaticano criado em 1929 dotou a Igreja de uma estrutura administrativa própria para gerir seu patrimônio e finanças. Pio XI fundou em 1929 a Administração Especial da Santa Sé, para gerenciar o capital indenizatório recebido da Itália e os bens adquiridos com ele[5].
Tal órgão foi precursor da atual Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA), instituição estabelecida formalmente em 1967 pelo papa Paulo VI. A APSA é responsável por administrar as propriedades imobiliárias do Vaticano (prédios, terras) e os investimentos financeiros da Santa Sé, funcionando na prática como o tesouro e o fundo soberano do Vaticano. É por meio dela que o papa, como chefe supremo, gere o chamado patrimônio da Sé Apostólica, garantindo recursos para as atividades da Igreja mundial e da Cúria Romana.
Outra instituição-chave é o Instituto para as Obras de Religião (IOR), popularmente conhecido como o Banco do Vaticano. O IOR foi criado em 1942 pelo papa Pio XII, sucedendo uma comissão anterior de caridade, com a finalidade de custodiar e administrar fundos destinados a obras religiosas ou caritativas e atender às contas bancárias de ordens religiosas, dicastérios e altos membros do clero.
Embora seja frequentemente chamado de “banco”, o IOR não é um banco comercial tradicional – trata-se de uma instituição financeira vaticana sui generis, que gerencia depósitos e investimentos de entidades católicas de todo o mundo. Nas décadas pós-guerra, o IOR ganhou proeminência e tornou-se o canal principal de muitas transações financeiras da Santa Sé. Contudo, ele também se envolveu em polêmicas.
Entre os anos 1970 e 1980, o IOR esteve no centro de escândalos de lavagem de dinheiro e operações ilícitas vinculadas à máfia italiana e a bancas fraudulentas. O caso do Banco Ambrosiano, cujo colapso em 1982 levou ao misterioso assassinato do banqueiro Roberto Calvi, expôs uma rede de corrupção envolvendo dirigentes do IOR (como o bispo Paul Marcinkus) e esquemas de financiamento ilegal.
Ou ainda o caso que voltou à mídia recentemente, em face do conclave, envolvendo o cardeal Giovanni Becciu, condenado em 2023 a cinco anos e seis meses de prisão, acusado de corrupção pelo desvio de US$ 200 milhões da Santa Sé, por utilizar recursos da Secretaria de Estado para investir em fundos de alto risco e comprar um imóvel de luxo em Londres. Esses escândalos abalaram a imagem da Igreja e evidenciaram a necessidade de reforma e supervisão mais rigorosa de suas finanças [6],[7].
A partir dos anos 2000, o Vaticano empreendeu esforços para promover transparência e controle financeiro. O papa Bento XVI deu os primeiros passos criando em 2010 a Autoridade de Informação Financeira (AIF, hoje rebatizada ASIF), um órgão de supervisão para prevenir lavagem de dinheiro e monitorar as atividades financeiras vaticanas.
Foi, porém, sob o papa Francisco que as reformas de transparência ganharam novo impulso. Em 2014 Francisco criou a Secretaria para a Economia, com status de dicastério equiparável a um ministério de finanças, conferindo-lhe “autoridade sobre todas as atividades econômicas e administrativas da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano”.
Simultaneamente, estabeleceu o Conselho de Economia, composto por oito cardeais e sete especialistas leigos em finanças, para orientar e fiscalizar as políticas econômicas. Medidas concretas logo se seguiram: o sigilo bancário no IOR foi abolido, e cerca de 5.000 contas suspeitas foram fechadas. A AIF (autoridade financeira) teve seus poderes reforçados para auditoria e cooperação internacional.
Em 2020, pela primeira vez, o Vaticano adotou um Código de Contratações Públicas, estabelecendo licitações transparentes para evitar desvios em contratos. Essas iniciativas, aliadas à nomeação de auditores profissionais e até de um procurador antimáfia no tribunal vaticano, resultaram em processos penais de alto nível (incluindo o julgamento de um ex-presidente do IOR por peculato em 2021) e melhoraram a reputação financeira da Santa Sé[8].
Atualmente, a estrutura financeira do Vaticano se apoia em: (a) APSA, que administra o patrimônio estável (imóveis e investimentos); (b) IOR, que lida com fundos de ordens e entidades católicas, operando sob normas internas e internacionais de compliance; (c) Secretaria para a Economia, que elabora o orçamento anual, supervisiona as contas de todos os dicastérios e publica relatórios financeiros consolidados; (d) Secretaria de Estado – Seção de Assuntos Gerais, que gere o Óbolo de São Pedro (coleta mundial para caridade do Papa) e outros fundos especiais; (e) Conselho de Economia e órgãos de auditoria, que garantem a prestação de contas.
O Vaticano possui duas entidades orçamentárias distintas: o orçamento da Santa Sé (que cobre a Cúria Romana, nunciaturas e atividades pastorais globais) e o orçamento do Estado da Cidade do Vaticano (relativo à administração do território, serviços urbanos, Museus Vaticanos etc.).
As receitas modernas do Vaticano vêm principalmente de doações internacionais (como o Óbolo e contribuições das dioceses de todo o mundo), rendimentos de investimentos e propriedades, receitas dos Museus do Vaticano (turismo religioso) e publicações, além de eventuais excedentes do IOR. Em 2013, o orçamento operacional da Santa Sé foi da ordem de US$ 300 milhões, enquanto os ativos patrimoniais ultrapassavam US$ 1 bilhão.
Entretanto, despesas crescentes têm causado déficits frequentes nas últimas décadas. A redução do número de católicos praticantes em alguns países e os escândalos passados diminuíram as doações em certos anos. Mesmo assim, a Igreja continua a contar com a generosidade dos fiéis e a rentabilidade de seus investimentos.[9],[10].
Estima-se que o déficit do Vaticano tenha alcançado € 83,5 milhões em 2023 — um aumento de 7% em relação a 2022 — impulsionado pelo crescimento das despesas operacionais, que chegaram a € 1,236 bilhão no mesmo ano. A esse cenário soma-se um rombo no fundo de pensões dos funcionários da Santa Sé, em torno de € 1,5 bilhão[11]. Esse cenário exigirá do novo papa ações efetivas no sentido de tornar sustentáveis as finanças do Vaticano.
Leão XIV assume com o grande desafio de equilibrar a gestão profissional dos recursos com a missão espiritual, num contexto de escrutínio público crescente sobre a ética e a transparência. Os avanços recentes – auditorias externas, publicação de balanços e tolerância zero com corrupção – indicam a determinação do Vaticano em manter suas finanças em ordem e alinhadas aos princípios morais que defende.
Como se pode constatar, falar sobre as finanças do Vaticano exige muito mais tempo e espaço do que permite esta breve coluna. Muito mais exigiria ao se falar das finanças de toda a Igreja Católica, o que é tema para muitos outros estudos e reflexões.
Enquanto os brasileiros estão atualmente às voltas com outro leão – o do Imposto de Renda –, o Vaticano tem o seu Leão, o XIV, que, além de se preocupar com os rumos da Igreja Católica e com os diversos dilemas a que está sujeita, terá uma árdua missão pela frente, que pouco tem a ver com religião, e muito com finanças públicas e Direito Financeiro. Ficam os desejos de boa sorte ao Sumo Pontífice!
[1] Para se ter uma ideia, em valores aproximados, na cidade de São Paulo o bairro da Liberdade tem 1,2km2, Vila Olímpia tem cerca de 2 km², Itaim Bibi tem aproximadamente 2,5 km² e Jardins em torno de 4 km². No Rio de Janeiro, o Leblon: possui uma área de aproximadamente 2,15 km², Ipanema: abrange cerca de 3,08 km² e Copacabana: tem uma extensão de aproximadamente 5,22 km².
[2] Dados mais recentes do Annuario Pontificio 2025 e do Annuarium Statisticum Ecclesiae 2023.
[3] A Igreja Católica é rica mesmo? Eis o que o sucessor do Papa Francisco encontrará. In Veja, 24.4.2025 (https://veja.abril.com.br/economia/a-igreja-catolica-e-rica-mesmo-eis-o-que-o-sucessor-do-papa-francisco-encontrara/)
[4] A Santa Sé exerce a autoridade eclesiástica suprema e coordena missões, nunciaturas, dicastérios e órgãos centrais da Igreja, enquanto o Estado da Cidade do Vaticano, criado em 1929 pelo Tratado de Latrão, é responsável pela gestão territorial, infraestrutura e soberania civil. Cada entidade possui orçamento próprio, ainda que haja interdependência funcional.
[5] Jornal italiano diz que Vaticano construiu império com dinheiro de Mussolini (In O Globo, 22.1.2013 – https://oglobo.globo.com/mundo/jornal-diz-que-vaticano-construiu-imperio-com-dinheiro-de-mussolini-7367393#:~:text=depois%20de%20milh%C3%B5es%20recebidos%20do,cerca%20de%20US%24%20904%20milh%C3%B5es).
[6] De onde vem a fortuna da Igreja Católica? (In Superfinanças, 22.4.2025 – https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2025/04/21/papa-francisco-deixa-legado-de-reformas-nas-financas-do-vaticano.htm#:~:text=Em%202014%2C%20o%20papa%20emitiu,leigos%20especialistas%20no%20setor%20financeiro / https://www.swissinfo.ch/por/sanear-as-finan%C3%A7as-do-vaticano%2C-o-eterno-desafio-dos-papas/89298306?utm_source=chatgpt.com)
[7] O que levou à condenação o cardeal afastado pelo papa Francisco que agora quer votar no Conclave (In G1, 23.4.2025 – https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/04/23/cardeal-que-desafiou-o-papa-e-quer-votar-no-conclave-foi-condenado-por-corrupcao.ghtml).
[8] Vide nota de rodapé 6.
[9] Economia do Vaticano (In Wikipedia, acesso em 13.5.2025 – https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia_do_Vaticano#:~:text=A%20economia%20do%20Vaticano%20%C3%A9,os%20programas%20sociais%20que%20desenvolve).
[10] O Brasil é um dos países que mais contribuem para o Óbolo, registrando o terceiro lugar em 2023, tendo os fiéis brasileiros doado € 1,9 milhão, ficando atrás apenas dos EUA e da Itália.
[11] As finanças do Vaticano que o Papa Leão XIV acaba de herdar. In Valor Econômico, 9.5.2025 (https://valor.globo.com/mundo/noticia/2025/05/09/as-financas-do-vaticano-que-o-papa-leao-xiv-acaba-de-herdar.ghtml?).