O papa Leão XIV e a economia

Como foi amplamente noticiado, o novo papa Robert Prevost escolheu o seu nome – Leão XIV – em homenagem a Leão XIII, que ficou conhecido por ser um defensor da justiça social, de melhores salários e de tratamento digno aos trabalhadores durante a Revolução Industrial.

Segundo o novo papa, é necessário que a Igreja ofereça a todos “o tesouro de sua doutrina social em resposta a mais uma revolução industrial e aos desenvolvimentos no campo da inteligência artificial, que representam novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”[1].

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O papa Leão XIII notabilizou-se pela sua encíclica Rerum Novarum, de 1891[2], considerada por muitos como uma das mais contundentes críticas ao capitalismo liberal do século 19, sendo também vista como uma das mais importantes bases teóricas da superação, no plano do constitucionalismo ocidental, do Estado Liberal em prol do Estado Social.

Com objetivo de tratar “os direitos e os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho”, a Rerum Novarum reconhece a vulnerabilidade do trabalhador e a consequente necessidade de se “vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida”.

Afinal, o século 19 destruíra as corporações e as proteções de que anteriormente gozavam os operários, deixando-os isolados e sem defesa, “entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada.” Daí a possibilidade de que um pequeno número de ricos pudesse impor “um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários”.

Diante de tal diagnóstico, a Rerum Novarum propõe uma conciliação entre o capital e o trabalho que seja compatível com o regime capitalista. Daí por que insiste na preservação da propriedade privada, nos riscos do socialismo e do comunismo, assim como é cautelosa ao se referir à desigualdade, vista como algo inerente à condição humana – até porque “o homem deve aceitar com paciência a sua condição” – e inclusive benéfico do ponto de vista social.

Também é verdade que a encíclica cobra os deveres dos operários, inclusive mostrando os efeitos negativos das greves e boicotes. Entretanto, a sua parte mais importante é a que insiste no fato de que os patrões não podem tratar os trabalhadores como escravos ou como meros instrumentos de lucro, devendo respeitar a dignidade deles, o que se projeta em bons salários, jornadas adequadas e exigências que sejam compatíveis com as forças dos trabalhadores, considerando também sua idade e sexo.

Daí mencionar aspectos como a qualidade do trabalho e a necessidade do que chama do “repouso festivo”, nos termos da seguinte argumentação:

“No que diz respeito aos bens naturais e exteriores, primeiro que tudo é um dever da autoridade pública subtrair o pobre operário à desumanidade de ávidos especuladores, que abusam, sem nenhuma descrição, tanto das pessoas como das coisas. Não é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade do homem, restrita como a sua natureza, tem limites que se não podem ultrapassar. O exercício e o uso aperfeiçoam-na, mas é preciso que de quando em quando se suspenda para dar lugar ao repouso. Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se por mais tempo do que as forças permitem. Assim, o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários. O trabalho, por exemplo, de extrair pedra, ferro, chumbo e outros materiais escondidos debaixo da terra, sendo mais pesado e nocivo à saúde, deve ser compensado com uma duração mais curta. Deve-se também atender às estações, porque não poucas vezes um trabalho que facilmente se suportaria numa estação, noutra é de facto insuportável ou somente se vence com dificuldade”.

Ao reconhecer a assimetria de poder entre empregadores e empregados e o inevitável risco de que os patrões explorem a pobreza e a miséria e ainda especulem com a indigência, a encíclica destaca a importância do Estado e das leis na proteção dos empregados, inclusive do ponto de vista da justiça distributiva.

Daí a sua conclusão de que “os patrões que esmagam os trabalhadores sob o peso de exigências iníquas, ou desonram neles a pessoa humana por condições indignas e degradantes; que atentam contra a sua saúde por um trabalho excessivo e desproporcionado com a sua idade e sexo: em todos estes casos é absolutamente necessário aplicar em certos limites a força e autoridade das leis”.

É interessante notar que, embora entenda que todos os cidadãos devam receber igual proteção por parte do Estado, a encíclica adverte para o fato de que deve haver preocupação especial com os fracos e indigentes, pois “a classe rica faz das suas riquezas uma espécie de baluarte e tem menos necessidade da tutela pública”, enquanto “a classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta principalmente com a proteção do Estado”. Disso decorre a invocação de “[q]ue o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre”.

Mesmo em relação às greves, embora as condene como fator de comprometimento da paz social, a Encíclica adverte que “o remédio, portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão de nascer os conflitos entre os operários e os patrões”.

Outro ponto que merece especial atenção são as restrições à livre negociação entre patrões e empregados, exatamente em razão da assimetria de poder. Sobre a ideia de que deve prevalecer o negociado entre os dois, afirma a encíclica que “semelhante raciocínio não encontrará um juiz equitativo que consinta em o abraçar sem reserva, pois não abrange todos os lados da questão e omite um deveras importante”.

Daí concluir que, como “o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado”, “se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta”.

Como se pode observar, apesar de se tratar de texto antigo, com praticamente 134 anos, seus ensinamentos continuam sendo extremamente pertinentes para uma realidade atual, na qual (i) a proteção do trabalho tem sido vista como óbice ao crescimento econômico e (ii) se busca ignorar tanto a assimetria de poder que normalmente caracteriza a relação empregador-empregado[3] como as inúmeras evidências de que o aumento da proteção ao trabalho não é incompatível nem com a oferta de emprego[4] nem com a prosperidade dos negócios[5].

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Não é sem razão que já publiquei uma série de artigos questionando os pressupostos jurídicos e econômicos da desregulação dos mercados de trabalho[6], apontando o quanto as premissas da desproteção ao trabalho estão descoladas tanto das garantias constitucionais e legais dos trabalhadores, como também das evidências e das teorias econômicas mais atuais.

Como o próprio papa Leão XIV advertiu ao justificar o seu nome, as preocupações do seu predecessor continuam sendo de extremo relevo, especialmente em face de uma nova revolução que se descortina aos nossos olhos, capitaneada por novas tecnologias e sobretudo pela inteligência artificial.

Assim, torna-se fundamental refletir sobre projetos de crescimento e desenvolvimento econômicos mais inclusivos, que possa assegurar o respeito aos direitos mínimos dos trabalhadores como premissa de uma prosperidade que precisa ser minimamente compartilhada e compatível com a dignidade da pessoa humana.


[1] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/05/10/leao-xiv-saiba-por-que-o-novo-papa-escolheu-esse-nome.ghtml

[2] https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html

[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercados-de-trabalho-ate-quando-seguiremos-insensiveis-a-assimetria-de-poder

[4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/aumento-do-salario-minimo-traz-efeitos-economicos-positivos

[5] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/bons-empregos-fazem-bons-negocios

[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-suas-consequencias-parte-i; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-flexibilizacao-dos-direitos-trabalhistas-parte-ii; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-flexibilizacao-dos-direitos-trabalhistas-parte-iii

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