Elaborado por parlamentares preocupados apenas e tão somente com suas bases eleitorais, portanto sem nenhum compromisso com o futuro econômico e social do país, o aumento de 513 para 531 vagas na Câmara dos Deputados poderá, caso venha a ser aprovado pelo Senado, corroer ainda mais a racionalidade do processo legislativo do país, multiplicando os problemas técnicos e os embates políticos na formulação de políticas públicas.
E isso ocorrerá especialmente no âmbito poder central, pois as pressões em favor da multiplicação dos diferentes tipos de emendas parlamentares irão aumentar, limitando a discricionariedade do governo federal.
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Pela concepção original do regime democrático federalista e bicameralista, que foi adotado primeiramente pelos Estados Unidos no final do século 18, a distribuição dos assentos na Câmara dos Deputados é definida com base no número de eleitores de cada estado.
Por isso, nesse país a maioria dos assentos é ocupada pelos estados mais geograficamente maiores e mais populosos, como Nova York, Texas e Califórnia. Para compensar essa desigualdade, o Senado exerce um papel equilibrador, evitando que os estados pequenos e com menor número de eleitores fiquem sem condição de atender suas demandas.
Com o objetivo de preservar os interesses da minoria frente a uma eventual voracidade dos parlamentares dos estados mais populosos, assegurando desse modo um certo equilíbrio federativo, o Senado americano representa os estados. Independentemente de seu tamanho geográfico e do tamanho de suas respectivas populações, todos eles têm dois senadores.
Com isso, o estado do Maine, com 1,4 milhão de habitantes e uma área geográfica de 91.633 km² tem nessa casa legislativa a mesma força política do estado da Califórnia, que conta com quase 40 milhões de habitantes vivendo numa área geográfica de 423.970 mil km².
Ainda que tenha se inspirado no modelo federalista e bicameralista americano, por várias razões o Brasil o desvirtuou com a passagem do tempo. Por razões de espaço, chamo a atenção de apenas um deles.
Trata-se de um fator de manipulação dos resultados eleitorais que ficaram evidenciados durante a ditadura militar, especialmente entre 1975 e 1977. Consciente de que na eleição de 1978 o MDB – então partido de oposição – ganharia as eleições, permitindo a ascensão de um civil ao poder e devolvendo os militares aos quartéis, o presidente da República, general Ernesto Geisel, promoveu a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, sob alegação de que eles formavam uma só unidade socioeconômica. Depois, dividiu Mato Grosso, capital Cuiabá, criando o estado de Mato Grosso do Sul, capital Campo Grande.
Como no Sudeste o MDB tinha enorme peso eleitoral, a fusão da Guanabara com o Rio de Janeiro retirou três vagas no Senado e reduziu significativamente o número de deputados da região na Câmara. Inversamente, como no Centro-Oeste a Arena predominava, a criação do estado de Mato Grosso do Sul deu-lhe mais três vagas no Senado e mais uma bancada na Câmara. Com isso, a ditadura se manteve, “elegendo” por maioria congressual, em outubro de 1978, o general João Baptista Figueiredo.
Mesmo com a redemocratização do país essa estratégia voltou a ser posta em prática. Na Constituinte, por exemplo, parlamentares das regiões Centro-Oeste e Norte – as menos populosas do país – dela se valeram para aumentar seu poder no Congresso. Criaram o estado do Tocantins, com base numa área antes pertencente a Goiás. Converteram os territórios de Roraima e do Amapá em estados. Independentemente de suas respectivas populações serem diminutas, deram-lhe o direito de contar na Câmara com um mínimo de oito vagas. Ao mesmo tempo, aprovaram um teto de 70 deputados para os estados mais populosos, o que prejudicou principalmente São Paulo.
O agravamento da distância entre a super-representação das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e a sub-representação das regiões Sudeste e Sul foi uma das consequências dessas mudanças. Esse problema agora vai aumentar ainda mais pois, das 18 novas vagas previstas, 12 se destinam às regiões já sobrerrepresentadas.
Outro problema está no fato de que, além do aumento de R$ 64,6 milhões nos gastos da Câmara, os ocupantes das novas vagas quase certamente ampliarão as pressões para transferir – sem qualquer critério técnico – recursos da União para suas bases.
Para se ter ideia desse problema, entre 2020 e 2024, Roraima, que tem uma população de cerca de 717 mil habitantes, recebeu, em média, R$ 1.900 por habitante em emendas parlamentares. Já São Paulo, que tem quase 46 milhões de habitantes, recebeu, em média, somente R$ 38 por habitante, em emendas parlamentares.
Distorções como essas se tornam ainda mais preocupantes quando os centros de pesquisa advertem que o valor das emendas parlamentares aprovado para 2025, no total de R$ 50,4 bilhões, já é superior à somatória dos recursos livres para investimento direto de 30 dos 39 ministérios do governo federal. E chegam às raias do absurdo, uma vez que, por meio de emendas parlamentares e de bancada, os parlamentares controlam diretamente os gastos em suas bases eleitorais, o que reduz a dependência dos parlamentares com relação à Presidência da República.
Em sua defesa, muitas autoridades municipais e estaduais alegam que a Constituição aumentou os gastos das prefeituras e estados com direitos sociais sem criar novas fontes de recursos para que os entes subnacionais pudessem cumprir as novas obrigações.
O problema, contudo, é que não se pode despir um santo para vestir outro. Dito de outro modo: não se pode exaurir recursos federais, destinados a toda sociedade brasileira em seu conjunto, para repassá-los – sem transparência e rastreabilidade – a municípios e estados que se limitam a gastá-los mais com interesses paroquiais, eleitoreiros e cartoriais do que com políticas estruturantes.
Quanto maior é a manutenção de estratégias de feudalização de poderes locais de porte pequeno e médio em pleno século 21, sob a justificativa provinciana e inverídica de muitos prefeitos de que eles conhecem o país melhor do que os tecnocratas de Brasília, mais surgem indagações que precisam de respostas urgentes num contexto econômico como o atual, que exige mais foco e qualidade nos gastos públicos, priorização na formação de capital humano, reorganização de despesas e negociações com os três níveis de poder para a formulação, implementação de políticas de médio e longo prazo.
Quais as noções que prefeitos e governadores têm das obrigações do Estado? A que estratégia as diferentes autoridades governamentais podem recorrer para assegurar mais qualidade na formulação de políticas públicas e na gestão de recursos escassos?
Quando parlamentares fisiológicos e prefeitos desprovidos de maior formação técnica vão compreender que, mais do que tentar aumentar os valores de suas emendas para desperdiçá-los com shows sertanejos e campinhos de futebol, é preciso diferenciar Estado e governo?
Quando, em vez de sobrecarregar Tribunais de Contas e o Ministério Público, irão agir com vistas à criação de condições mínimas para uma governabilidade fundada em competência técnica, impessoalidade, planejamento, definição de metas e uma coordenação eficiente capaz de recuperar a noção de poder público?