Por muitos anos, a incidência da prescrição sobre os processos de contas foi alvo de acirrados debates entre os aplicadores do direito, havendo uma tendência majoritária em compreender a competência ressarcitória dos Tribunais de Contas como imprescritível. Defendia-se, para tanto, a incidência do § 5º do art. 37 da Constituição Federal, segundo o qual são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário.
A prescrição é instituto fundamental para a segurança jurídica, operando a extinção da pretensão estatal pelo decurso do tempo. Sua função precípua é estabilizar situações jurídicas e pacificar relações sociais. A proteção desse princípio nos processos de contas, contudo, manteve-se deficiente por décadas.
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A evolução interpretativa iniciou-se no Poder Judiciário. Provocados por jurisdicionados condenados por Tribunais de Contas, magistrados e tribunais, reconhecendo a prescritibilidade da competência ressarcitório nos processos de contas, passaram a proferir decisões declarando nulos acórdãos condenatórios intempestivamente proferidos pelos Tribunais de Contas.
Ao Supremo Tribunal Federal coube, outrossim, pacificar a questão, sobretudo ao julgar o Tema 899, por meio do qual, reconhecendo que os processos administrativos não possuem natureza de ação, firmou-se que a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas é prescritível.
O Tribunal de Contas da União, entretanto, resistiu por anos à revisão de seu entendimento de que sua competência ressarcitória seria imprescritível. Apenas após a uniformização de entendimento concedida pelo STF, o TCU editou a Resolução 344, de 11 de outubro de 2022, regulamentando a prescrição para o exercício das pretensões punitiva e ressarcitória nos processos sob sua jurisdição.
No art. 5º da Resolução, foram disciplinadas as causas de interrupção da prescrição, ou seja, os eventos que, quando ocorrem, ensejam o reinício da contagem do prazo prescricional.
À semelhança da Lei 9.873, de 23 de novembro de 1999 – que estabelece o prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública federal –, a primeira hipótese de evento interruptivo prevista na norma é a “notificação, oitiva, citação ou audiência do responsável, inclusive por edital”.
A organização observada em ambas as normas conduz ao entendimento de que apenas com a cientificação válida da parte poderiam incidir causas interruptivas da prescrição, ou seja, que esta seria o primeiro evento apto reiniciar a contagem do prazo prescricional.
O TCU tem, contudo, reiteradamente considerado como atos de interrupção eventos que ocorreram sem a ciência da parte interessada, por assumir como marco inicial ato processual ocorrido antes da sua notificação, oitiva, citação ou audiência. Nesse sentido:
O termo inicial para a contagem do prazo prescricional das pretensões punitiva e ressarcitória do TCU no caso previsto no art. 4º, inciso II, da Resolução TCU 344/2022 (data da apresentação da prestação de contas ao órgão competente para a sua análise inicial) aplica-se à empresa contratada pelo convenente, mesmo que ela tenha sido chamada aos autos apenas na fase externa da tomada de contas especial.[1]
O entendimento do TCU tem implicado na perenização de processos de contas, que tramitam por décadas por meio de atos morosos, que não conduzem à sua resolução, praticados sem a efetiva participação do interessado. Não raro, cidadãos são surpreendidos com citações para se defenderem sobre fatos longínquos, anos após haverem encerrado seus mandatos, se aposentado do cargo público que exerceram ou encerrado as atividades da empresa da qual foram sócios, por exemplo.
À parte processada é imputado o ônus de suportar as consequências de uma inércia que não foi sua, decorrentes da demora excessiva da Administração Pública de apurar fatos e impulsionar processos.
Sob o entendimento de que a prescrição poderá ser interrompida por atos ocorridos antes da citação da parte, promove-se uma disciplina contraditória da prescrição, que, ao invés de promover a segurança jurídica, enseja a insegurança, a instabilidade, a imprevisibilidade. O TCU pretende aplicar em seus processos uma prescrição que existe como o “café descafeinado” – possui o nome de prescrição, mas não produz os seus efeitos.
No STF, outrossim, tem-se firmado o entendimento de que o primeiro ato apto a interromper a prescrição nos processos de contas é, precisamente, a citação da parte, a partir da qual os atos apuratórios passam a ocorrer com a ciência da parte investigada. Destaca-se, nesse sentido, os julgados abaixo:
Neste cenário, entendo que ficou demonstrado a ocorrência da prescrição, por não ser imprescritível o direito da Administração Pública ao ressarcimento de valores e uma vez já terem se passado cinco anos entre a prestação de contas (em 21 de fevereiro de 2005) e a primeira notificação de ocorrência de irregularidade na aplicação de valores (em 27 de julho de 2012).
Não há que se falar em interrupção de prescrição, porquanto não ocorreram marcos com aludida característica. Os atos levados a efeitos pela Administração entre citado período, de fevereiro de 2005 a julho de 2012, não chegaram ao conhecimento do impetrante. [2]
Esta corte possui precedentes (MS 37751/DF e MS 38.288) no sentido de que os atos de apuração do fato apenas causam a interrupção da prescrição na hipótese em que o interessado tem conhecimento de que a Administração deu início ou praticou algum ato tendente a apurar fatos a ele ligados, com a descrição da conduta individual objeto de investigação.
Se os fatos apurados não chegaram ao conhecimento dos responsáveis a tempo, o Supremo Tribunal Federal não tem reconhecido a aplicabilidade dos marcos interruptivos da prescrição eventualmente invocados pela Administração.[3]
A despeito dos precedentes do STF – que exerce, em nosso sistema jurídico, a função de guardião da Constituição – os ministros do TCU seguem entendendo que atos ocorridos à revelia da parte interrompem o prazo prescricional.
Com esse entendimento, o TCU deixa de considerar, inclusive, os prejuízos experimentados pela parte que, após transcorrido longo período dos fatos apurados, é citada para se manifestar defensivamente. Tal situação revela-se ainda mais gravosa quando se considera que, nos processos de contas, há uma inversão do ônus da prova, cabendo ao responsável demonstrar a regularidade da aplicação dos recursos.
Dessa forma, a demora na cientificação compromete não apenas o direito à ampla defesa, mas também a própria possibilidade de produção de provas eficazes, tornando desproporcional a exigência probatória imposta ao processado.
Com efeito, o transcurso de tempo acarreta o distanciamento dos fatos, a dificuldade de produção de provas, a impossibilidade de contato com pessoas que poderiam auxiliar na rememoração de fatos e a reunião de documentos – ou, como expressou o ministro Vital do Rêgo, do próprio TCU, o “tempo progressivamente degrada o exercício da ampla defesa”[4].
Não somente; diante da recalcitrância do tribunal, resta à parte despender mais recursos para buscar no Judiciário a guarida dos seus direitos. Tal prática não só onera o cidadão, mas também representa desperdício de recursos públicos envolvidos na condução de um processo natimorto. Trata-se de ato antieconômico praticado pelo tribunal ao qual a Constituição reservou a competência precípua de zelar pelo patrimônio público.
A prescrição da pretensão ressarcitória é matéria relativamente nova no TCU, que tem passado por uma evolução interpretativa, com grandes avanços em direção à segurança jurídica. É necessário, contudo, que essa evolução envolva a promoção de uma interpretação conforme a Constituição do art. 5º da Resolução 344/2022, que assegure de fato a segurança jurídica, a ampla defesa e o contraditório, reconhecendo que apenas com a citação válida da parte processada é possível que incidam causas interruptivas da prescrição.
É imprescindível a adoção, pelo TCU, de interpretação conforme à Constituição e à jurisprudência do STF, reconhecendo que apenas com a ciência do interessado poderá haver interrupção do prazo prescricional. Trata-se de medida que assegura a efetividade da prescrição e reforça os pilares do Estado de Direito.
[1] Acórdão 3719/2024-Primeira Câmara. Relator: Jhonatan de Jesus.
[2] STF. MS 37.751/MC. Relator: Ministro Nunes Marques.
[3] STF. MS 39834/DF. Relator: Ministro Flávio Dino.
[4] Acórdão 294/2024 – TCU – Plenário; Relator: Ministro Vital do Rego.