O Cade e a Doutrina da Ação Política: o curioso caso dos conselhos profissionais

Foi pautado para esta quarta-feira (14), na 247ª Sessão Ordinária de Julgamento do Cade, o julgamento de três casos envolvendo conselhos profissionais que, em 2019, emitiram resoluções contra o registro do diploma de graduados na modalidade “a distância”.

As resoluções foram declaradas nulas pelo Judiciário por violação à liberdade profissional e à legislação sobre educação, que expressamente incumbe ao MEC a competência sobre a formação escolar.[1]

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Segundo a Superintendência-Geral do Cade, os conselhos federais de medicina veterinária (CFMV), odontologia (CFO) e farmácia (CFF) teriam, com as normativas, também limitado a concorrência em dois tipos de mercado relevantes: o de cursos de graduação EaD e os de serviço relativos a cada umas das áreas.

Com base em renitente jurisprudência, que inclui sobretudo casos de tabelamento impositivo de preços, a tendência do Cade é condenar os conselhos por infração à ordem econômica decorrente de abuso de poder regulamentar.[2]

Há, todavia, algo de novo no ar: está pendente de julgamento o caso OAB por tabelamento de honorários mínimos.[3]

Se no caso EaD a Procuradoria-Geral do Cade recomenda a condenação dos conselhos profissionais, no caso OAB ela opina pelo arquivamento do feito com base na Doutrina da Ação Política (State Action Doctrine).

Isso pode predispor o Conselho a antecipar algum aclaramento sobre referida doutrina, que é igualmente arraigada na jurisprudência do Cade, em dois pontos relacionados: a) a extensão do art. 31 LDC; e b) o distinguishing entre entes reguladores e conselhos.

A extensão do art. 31 LDC

Segundo o dispositivo, que repete o art. 15 da LDC de 94, a lei aplica-se também às pessoas jurídicas de direito público.

Uma vez que elas agem mediante atos normativos estatais, sua punibilidade implica possuir o Cade competência para controle de legalidade sob alguma forma.

Suas instâncias típicas são ações maliciosas, como e.g. a autarquia que mediante ato executório participa de cartel ou agência reguladora que favorece o corruptor com uma resolução normativa.

A dificuldade aparece quando estamos diante de ato regulamentar próprio, isto é, não dissimulado, no qual o dano à concorrência é resultado da priorização, com boa-fé, de outro princípio da ordem econômica.

Para o constitucionalista, a resposta mais natural seria negar ao Cade o controle de legalidade na hipótese, em analogia ao precedente fixado na ADI 221, que veda aos órgãos do Poder Executivo deixar de aplicar a lei inconstitucional, salvo, excepcionalmente, quando assim determinado pela chefia.[4]

Sua justificativa parece clara: a autonomia interpretativa dos órgãos subordinados balcanizaria a política pública levada a cabo pelo mandatário, levando a disputas entre os órgãos que se traduziriam em comandos contraditórios aos administrados.[5]

A resposta mais natural ao concorrencialista é nuançada: deve o Cade eximir o ato do Poder Público prejudicial à concorrencial se propriamente regulatório, isto é, se satisfizer os critérios da Doutrina da Ação Política.[6]

Essa opção, que é a esposada pelo Cade até aqui, tem o mérito de respeitar a hierarquia móvel dos princípios da ordem econômica, mas traz o revés de permitir os resultados contraditórios que o constitucionalista quer evitar – vide o ocorrido em THC2.[7]

A resolução do caso pelo STJ concluiu pela competência do Cade para controle de legalidade das resoluções da Antaq, sem, contudo, tocar a dificuldade acima.[8]

Uma alternativa estreita talvez se encontre na brecha aberta pelo STF ao revisitar sua jurisprudência, permitindo o afastamento de normas patentemente inconstitucionais – ou ilegais, em nossa analogia.[9]

Outra seria recorrer à atuação integrativa da AGU, seja por uma conciliação via CCAF, seja por uma resolução via parecer normativo.[10]

O distinguishing entre entes reguladores e conselhos profissionais

Como antecipado, o debate acima foi até aqui alheio aos conselhos profissionais, já que o Cade não os equipara às agências reguladoras, mas aos sindicatos – embora as razões para tanto não sejam claras, como evidencia o caso OAB.

Considerando os termos da Doutrina da Ação Política, a tese do Cade deve fundar-se numa disjunção: ou os conselhos não são propriamente Poder Público ou seus atos não são propriamente regulatórios.

Quanto à subtese estrutural, embora ambos sejam autarquias de direito público, criadas por lei e submetidas a regime jurídico especial que as torna sui generis, os conselhos são ainda menos sujeitos a controle do que as agências, o que lhes valeu a alcunha (infeliz) de “autarquias não estatais”.[11]

Isso significa, entre outras coisas, que a solução integrativa envolvendo a AGU não estaria disponível.

Quanto à subtese funcional, parece claro que ambos se orientam, via de regra, à correção de falhas de mercado, mediante atividade fiscalizatória e regulatória.

A ProCADE diverge no ponto: no aludido parecer, defende que a OAB é o único conselho ao qual a lei expressamente usou o termo ‘regulamentar’ entre suas atribuições.[12]

Nota-se, todavia, que a legislação dos demais conselhos prevê a expedição de resoluções para sua fiel interpretação e execução das atribuições institucionais – o que nada mais é do que uma forma de regulamentação.[13]

Mais promissora para a disanalogia visada é a constatação de que os conselhos nem sempre agem em prol da coletividade, encampando também interesses classistas – vide a OAB.

Embora essas considerações justifiquem escrutínio concorrencial mais intenso de tais entes, segue em aberto se excluem, in abstracto, os conselhos da Doutrina da Ação Política, ou se esse escrutínio deve ser feito originariamente pelo Cade.

A experiência internacional, salvo melhor juízo, é, de um lado, infensa a eximir os conselhos, mas de outro, centralizada no Judiciário.[14]

Seja como for, é um debate que merece ser desenvolvido.

*

A opinião que ora veiculo surgiu ainda no Cade, em contato com casos relacionados. Toda informação utilizada para o artigo é de fonte pública; a opinião não representa a opinião do conselho sobre o tema, que o autor desconhece. Agradeço a José Levi do Amaral Jr., Matheus Carneiro, Victor Fernandes, Vitor Jardim, Eduarda Militz e Bruno Renzetti pelos debates sobre o tema.


[1]  Os julgados seguem o precedente fixado no REsp 1.453.336/RS.

[2]  Cf., por todos, a Nota Técnica SG 42 no PA 08700.006146/2019-00, o primeiro caso autuado.

[3]  Nota Técnica 102/2022 no PA 08012.006641/2005-63.

[4] ADI-MC-221 DF, Rel. Min. Moreira Alves, 1990.

[5] Embora o contexto seja diferente, vale a menção ao regimento do tribunal vizinho, o Carf (art. 98).

[6] Para a enunciação da doutrina, por todos, AP 08000.013661/1997-95, Rel. Cons. Luís Fernando Schuartz e PA 08012.006507/1998-81, Rel. Cons. Roberto Castellanos Pfeiffer.

Os critérios são bem resumidos pelo Cons. Paulo Burnier no P.A. nº 08012.001518/2006-37: (i) excepcionalidade do afastamento da análise concorrencial; (ii) capacidade de efetiva e ativa supervisão do mercado; (iii) especificidade da norma regulatória em relação à norma concorrencial; e (iv) enquadramento da determinada política pública como manifestação de um poder soberano do Estado.

[7] PA 08700.005499/2015-51, Rel. Cons. Luiz Hoffmann.

[8] REsp 1.899.040-SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, 2024, tópico X.

[9] MS 25.888-Agr, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2023.

[10] Cf. Parecer GM-020, de 2001, no conflito Cade-Bacen, que todavia terminou judicializado (REsp n. 1.094.218/DF).

[11] ADI 5.367, Red. Ac. Min. Alexandre Moraes, 2020.

[12]  Parecer 20/2023 ProCADE no PA 08012.006641/2005-63, §§ 123, 174 e 180.

[13]  Para os conselhos do caso EaD, v. arts. 1º e 6º g, l, m, p da Lei nº 3.820/60 (Farmácia); art. 16 f, j da Lei nº 5.517/68 (Medicina Veterinária); arts. 2º e 4º d da Lei nº 4.324/64 (Odontologia).

[14] Cf. USSC. Goldfarb v. Virginia State Bar, 421 U.S. 773 (1975); e ECJ. Consiglio nazionale dei geologi, C‑136/12 (2013) e Wouters, C-309/99 (2022).

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