Leão XIV pode ser para a extrema direita o que João Paulo II foi para o comunismo

“Ey, Ey, Eymael! Um democrata cristão.” No Brasil, esse jingle de eleições presidenciais passadas virou meme. Na Europa, democracia cristã era coisa séria e funcionou como um ponto de equilíbrio entre o liberalismo clássico — na prática, pai do capitalismo selvagem, sem um contrato social mediado pelo Estado — e a busca por uma alternativa socialista, que romperia o status quo não apenas econômico, mas também moral.

Parece estar em declínio com a ascensão da extrema direita, tal como demonstrado nas últimas eleições legislativas alemãs, em que a União Democrata Cristã (CDU) ficou com menos de 30% dos votos e, em segundo lugar, vieram os neonazistas da Alternativa para a Alemanha (AfD), hoje o principal partido de oposição no país.

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Como o nome sugere, a democracia cristã é indissociável da esfera religiosa e, em perspectiva histórica, é atribuída ao papa Leão XIII, referência para que o cardeal americano-peruano Robert Francis Prevost assumisse o trono de São Pedro sob o nome de Leão XIV ao vencer o conclave de 8 de maio passado.

Leão XIII é o pai da Doutrina Social da Igreja Católica, expressa num conjunto de encíclicas publicadas na transição do século 19 para o século 20. Porém, as circunstâncias históricas daquele período, o auge da Segunda Revolução Industrial e do imperialismo europeu na África e na Ásia, levaram o então Sumo Pontífice a ver qualquer expressão de democracia na esfera política como indício de subversão da ordem.

Isso fica claro numa leitura apurada de Graves de communi re, na qual Leão XIII condena o poder popular, entendendo-o como equivalente ao socialismo e, portanto, à abolição da sociedade de classes e da propriedade privada. A encíclica foi publicada em 1901, quando o sufrágio universal — incluindo mulheres — existia apenas na longínqua e predominantemente protestante Nova Zelândia. O papa pode ser infalível para os católicos, mas dele não se pode cobrar expertise em teoria social, ainda mais numa era em que os trabalhadores ainda lutavam por direitos políticos.

À luz dessas circunstâncias históricas, Leão XIII foi demasiadamente avançado dez anos antes, quando, em 1891, publicou a encíclica Rerum Novarum, defendendo salários justos, direitos sociais para os trabalhadores e até mesmo seu direito à sindicalização. É o que Leão XIV sinaliza fazer na era contemporânea quando afirmou nesta segunda-feira (12) que a inteligência artificial traz “novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.

Diferentemente do pontífice que honra com seu nome papal, o novo papa já demonstrou preocupação com a democracia. Quando era bispo no Peru, criticou a libertação em 2017 do ex-ditador Alberto Fujimori, que em 1992 empreendeu um autogolpe e lançou o país em oito anos de autoritarismo que inspira até hoje movimentos de extrema direita na América Latina. Em conversa com jornalistas nesta segunda-feira, Leão XIV demonstrou preocupação com a prisão de profissionais de imprensa ao redor do mundo e o uso da desinformação a favor de ideologias.

Em menos de uma semana de pontificado, Leão XIV, portanto, demonstra ter como inimigo qualquer regime ou projeto de poder autoritário, dentre os quais hoje se sobressai a extrema direita populista-nacionalista. É sintomático que Prevost, nos Estados Unidos, mesmo sendo eleitor registrado no Partido Republicano, tenha criticado abertamente o vice-presidente J. D. Vance. O alinhamento do religioso no campo conservador pré-extrema direita faz sentido sobretudo considerando o posicionamento pró-aborto dos democratas, o que não é aceito por religiosos católicos.

Da mesma forma, seu muito provável afastamento desse campo com a ascensão trumpista indica a busca por um caminho que está longe da esquerda, muito embora enfatize a conquista por direitos mínimos para todos independentemente da origem. Ou seja, busca-se uma postura democrata cristã, um meio termo entre o que na leitura católica seriam os extremos políticos, ambos deletérios para a vida espiritual.

Nessa toada, Leão XIV tem tudo para se tornar o João Paulo II dos autocratas contemporâneos, em particular os de extrema direita, que se valem da religião para fundamentar sua retórica de ódio contra minorias e atrair o voto dos trabalhadores, sem dar as costas para o neoliberalismo que nos reduz a meras máquinas exploradas até a exaustão.

A ironia é que o hoje São João Paulo II aliou-se tacitamente nos anos 1980 aos dois maiores nomes do neoliberalismo na política — o americano Ronald Reagan e a britânica Margaret Thatcher — para derrotar o comunismo. No entanto, ao desmascarar a falta de sensibilidade para com os trabalhadores da extrema direita, Leão XIV pode, como se diz entre fiéis católicos, descobrir um santo para cobrir outro.

Ficariam ao relento a agenda progressista na esfera cultural, inclusive as demandas por maior igualdade de gênero dentro da própria igreja e que, timidamente, começaram a ser endereçadas pelo seu antecessor, o papa Francisco.

Enquanto isso, no Brasil, esperar que surja uma democracia cristã para se contrapor ao bolsonarismo equivale a acreditar que José Maria Eymael, aquele do meme e líder do DC, pode ser presidente após várias tentativas com votação irrelevante. Mais fácil Nikolas Ferreira e seu fundamentalismo evangélico pop-midiático chegar lá.

Outro ditado diz que santo de casa não faz milagre. Poderá Leão XIV, com sua origem na América do Norte e vida missionária na América do Sul e hoje bispo de Roma, nos livrar da tentação autoritária? Numa eleição laica, não há Espírito Santo que guie crentes e ateus. Resta-nos apenas a razão, fruto de Deus ou da evolução, contra a barbárie que os cruzados da extrema direita empreendem a passos largos.

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