Depois da reportagem veiculada pela mídia a respeito da possível atuação criminosa de intermediários na comercialização de atas de registro de preços, o Tribunal de Contas da União (TCU) elegeu um novo alvo: o uso do Sistema de Registro de Preços (SRP) para as contratações públicas.
Apesar de se tratar de um instrumento relevante para a racionalização, eficiência e desburocratização da máquina administrativa, o aumento no número de contratações processadas mediante SRP levanta questionamentos atinentes a falhas de planejamento, quantitativos superestimados, inadequação do SRP às características do objeto pretendido e possíveis irregularidades em adesões a atas de registros de preços.
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São esses os fundamentos do pedido de fiscalização feito pelo ministro Benjamin Zymler, aprovado pelo plenário do TCU na sessão de 2 de abril deste ano, o qual, diante dos riscos de utilização irregular do sistema de registro de preços, sugeriu um controle mais rigoroso pela Corte, a serem contemplados em auditoria específica.
O instrumento, que já é conhecido da prática administrativa, foi ampliado na Lei 14.133/2021 para abarcar também obras e serviços de engenharia (artigo 82, § 5º). Além dos requisitos gerais estabelecidos para o SRP, a sua utilização, nesses casos, pressupõe o atendimento a dois requisitos específicos:
- a existência de projeto padronizado, sem complexidade técnica e operacional; e
- a necessidade permanente ou frequente da obra ou serviços a ser contratado.
Projeto padronizado é o projeto referencial que pode ser reproduzido repetidas vezes, com nível de precisão suficiente para assegurar que os projetos e os detalhamentos subsequentes sejam executados apenas com as adequações necessárias às especificidades dos locais de sua implantação, adaptando-se às condições reais dos locais de execução das obras ou serviços.[1]
Daí se vislumbra uma vocação, quase que natural, do SRP à contratação de obras e serviços comuns de engenharia, bem como uma dificuldade na sua utilização para a contratação de obras ou serviços especiais de engenharia, que possuem características singulares e heterogêneas.
Do mesmo modo, serviços nos quais predomine a intelectualidade, a princípio, não se revelam compatíveis com a modelagem do registro de preços, já que a valoração da qualidade técnica das propostas é essencial para os fins pretendidos pela Administração.
Tais circunstâncias parecem ter chamado a atenção do ministro Benjamin Zymler, que, na mesma sessão de 02/04/2025, demonstrou preocupação com o registro de preços para obras públicas sem a prévia elaboração de projetos.[2]
Não é de hoje que o TCU tem alertado para que o SRP seja utilizado apenas para obras e serviços de engenharia padronizáveis e replicáveis, e não para a celebração de “contrato guarda-chuva” – aqueles com objeto incerto, sem prévia delimitação dos locais onde as intervenções serão realizadas e sem prévia elaboração de projetos básicos ou termos de referência[3].
Mas não basta a padronização. Além disso, é necessário que a demanda não se esgote em uma única contratação. Isso porque o SRP tem por vocação o atendimento a necessidades variáveis da Administração, que se repetem com alguma periodicidade. Não por acaso o artigo 85 da Lei 14.133/2021 enuncia o requisito de que haja “a necessidade permanente ou frequente da obra ou serviços a ser contratado”.
Se a necessidade é certa e imediata, e se exaure mediante única contratação, o segundo requisito legal não será atendido e o caminho será a licitação convencional, sem a utilização do registro de preços.
Como se pôde notar até aqui, de fato, há objetos que não se compatibilizam com o registro de preços, em razão de sua natureza específica, não padronizada e não renovável.
A experiência prática nos mostra que essas são características verificáveis em grande parte das obras e serviços de engenharia. Há casos, no entanto, em que o próprio TCU já considerou passíveis de serem modelados pelo SRP: serviços de tapa-buraco e recapeamento asfáltico, a construção de quadras poliesportivas, postos policiais e creches com projetos padronizados.
A discussão posta é relevante porque são muitos os riscos trazidos pela má utilização do SRP.
De início, se destaca o risco de ineficiência da ação administrativa, ante licitações desertas, fracassadas, ou incapazes de capturar toda a economia de escala pretendida. Especificamente no campo das obras e serviços de engenharia, tem-se o risco de se tornar artificialmente padronizado o que não pode ser, o que abre margem para contratações de baixa qualidade, incapazes de atender ao interesse público que se pretenderia realizar.
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Isso sem falar nos riscos ainda mais graves, por sua natureza sistêmica, ligados à estipulação de quantidades superestimadas de itens em atas de registros de preços e à ampla possibilidade de adesão a tais atas por outros órgãos e entidades da Administração Pública. Aqui, a ampla concorrência e a competitividade nas licitações públicas que estão em perigo.
Assim foi criado, pelo TCU, o jargão “barriga de aluguel”, para se referir à prática de gerar atas com quantitativos desnecessários e superestimados, apenas para favorecer um fornecedor e viabilizar adesões futuras. Essas atas com quantitativos superestimados têm sido exploradas por intermediadores (“corretores” de atas”), que comercializam os itens registrados com potenciais caronas, com o intuito de obter vantagens indevidas.
As adesões, aliás, também chamaram a atenção dos órgãos de controle recentemente. No início deste mês, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) recomendou que se ampliem a fiscalização das adesões às atas pelos órgãos que lhes são jurisdicionadas[4]. Não é só o TCU, portanto, que deve voltar sua atenção ao tema.
Apesar do exposto, o SRP é um instrumento que traz diversas vantagens para a gestão das contratações públicas. Reduz a burocracia, possibilita ganhos de escala, o atendimento a necessidades de mais de um órgão ou entidade, a contratação adequada às demandas variáveis.
É o desvirtuamento no uso do registro de preços – como a prática de “comercialização” de ata de registro de preços – que precisa ser combatido com rigor.
Devemos ter em mente, contudo, que o que diferencia o remédio do veneno é a dose aplicada. É importante, portanto, que a atuação dos órgãos de controle não sirva de desestímulo ao uso do registro de preços, tampouco que enseje o indesejado “apagão das canetas” dos administradores que desejem inovar, de forma legítima e respaldada, na aplicação desse relevante instrumento, inclusive em matéria de obras e serviços de engenharia.
Que tenhamos um uso mais responsável, consciente e transparente do SRP, cuja relevância, já sedimentada na prática administrativa, foi ainda mais ampliada com a Lei 14.133/2021. Todos nos beneficiaremos do ganho de eficiência e de escala que essa ferramenta, se bem aplicada, é capaz de gerar.
[1] Decreto 7.983/2013, art. 2º, inciso XVII.
[2] Fonte: TCU. Ata 10, de 2 de abril 2025, Sessão Ordinária do Plenário. Disponível em: <https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/pesquisa/ata-sessao>. Acesso em 23/04/2025.
[3] Acórdão 3.143/2020- Plenário.
[4]Disponível em: <https://atricon.org.br/entidades-recomendam-ampliacao-na-fiscalizacao-de-adesoes-as-atas-de-registros-de-precos/>. Acesso em: 25/04/2025.