Em defesa da salvaguarda socioambiental dos créditos de reciclagem

Durante a ditadura de Getúlio Vargas, nos anos 1930, o advogado Sobral Pinto protagonizou um caso emblemático ao recorrer à Lei de Proteção aos Animais (Decreto 24.645/1934) para defender a dignidade de presos políticos. Apresentou como argumento que os presos estavam sendo submetidos a um tratamento desumano que, segundo o próprio estatuto, nem mesmo animais poderiam ser tratados daquela maneira.

Hoje, paradoxalmente, mesmo que muitas cidades já proíbam o uso de veículos movidos à tração animal e de animais para transporte de cargas, a exemplo de São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte – inclusive com reconhecimento de sua constitucionalidade pelo STF (Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 976.552, muitos parecem não se importar ao ver um catador de materiais recicláveis de chinelo, sob sol e chuva, puxando uma carroça com centenas de quilos, em condições subumanas. 

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Será que teremos que, novamente, recorrer às leis de proteção aos animais para garantir direitos humanos básicos a este público vulnerável? Não é hora de reconhecermos a dignidade desses trabalhadores e assegurar que sua atuação seja respeitada? É urgente mobilizar a sociedade e o poder público para garantir que os catadores tenham condições de trabalho seguras e dignas, valorizando seu importante papel socioambiental na limpeza urbana e reciclagem.

Enquanto setores industriais se orgulham de seus índices de reciclagem, pouco se fala sobre a origem desses materiais. Muitos desses materiais retornam à cadeia produtiva vindos de lixões, onde crianças e mulheres grávidas trabalham na coleta em condições análogas à escravidão, sob o controle de “atravessadores” e até mesmo do crime organizado. 

Ironicamente, enquanto outras cadeias produtivas, como a da carne e a do ouro, enfrentam pressão para combater o desmatamento ilegal, a violação dos direitos de comunidades indígenas e o trabalho escravo, a cadeia da reciclagem parece ser uma exceção. Não se verifica o mesmo cuidado e controle com a origem dos materiais recicláveis, desde que eles cheguem às fábricas e sejam transformados em novos produtos, gerando os tão buscados “créditos de reciclagem”.

Essa realidade precisa mudar. A implementação de salvaguardas socioambientais nos créditos de reciclagem é fundamental para garantir que os materiais recicláveis sejam coletados, triados e processados de forma sustentável e ética. Isso inclui a adoção de práticas de devida diligência (due diligence) e de responsabilização socioambiental da cadeia produtiva, que garantam que os direitos dos trabalhadores sejam respeitados.

A agenda ESG (Environmental, Social and Governance) também deve incluir, portanto, a promoção de práticas sustentáveis e a responsabilidade socioambiental nos créditos de reciclagem, garantindo que todo o processo do sistema de logística reversa seja transparente e impacte positivamente as comunidades e o meio ambiente.

Para isso, é necessário que os setores industriais e governamentais trabalhem juntos para implementar um sistema nacional de controle que assegure a origem e o destino dos materiais recicláveis e reciclados, a partir de sua rastreabilidade, bem como contar com auditorias em todo o processo. Não menos importante, é essencial que os consumidores se conscientizem sobre a origem dos produtos e passem a exigir das empresas transparência em relação às suas práticas de reciclagem. 

Contudo, muito pouco se tem visto desta discussão na cadeia da logística reversa que é abastecida, em grande parte, com o trabalho degradante de catadores e catadoras de materiais recicláveis, que vivem em condições de miséria e de risco. Da mesma forma, estão as cooperativas e associações espalhadas por todo o país que, em sua maioria, vivem a penúria e descaso do setor público e privado, com trabalhadores recebendo valores abaixo do salário-mínimo, em péssimas condições sanitárias e sem nenhuma proteção trabalhista ou previdenciária.

É fato que os catadores de materiais recicláveis, sozinhos, não conseguirão dar conta de toda a logística reversa das embalagens no país — sendo necessárias diversas iniciativas complementares e paralelas e envolvendo outros atores. Por outro lado, sem a inclusão e valorização desses profissionais nesse processo não será possível avançar, sobretudo porque a Política Nacional de Resíduos Sólidos reconhece, em vários dispositivos, a prioridade dessa categoria na contratação.

Apesar dos desafios, não se pode negar os avanços recentes no sistema de logística reversa das embalagens em geral. Atualmente, mais de 15 estados regulamentaram a matéria, além da publicação de decretos federais que consolidam normas sobre a gestão de resíduos sólidos e logística reversa.

A pauta tem sido fortalecida, em grande parte, pela atuação do Ministério Público em estados como São Paulo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, entre outros, que têm retirado do papel uma legislação que vinha sendo negligenciada. 

O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima tem liderado esta agenda com a abertura de consultas públicas sobre regulamentações, transparência ao divulgar os resultados, inclusive, com aprovações parciais de relatórios apontando acertos e falhas nos programas. Tem, ainda, estabelecido procedimentos e programas visando apoiar e incentivar as cooperativas e associações de catadores e catadoras de materiais recicláveis e reutilizáveis, sendo de extrema importância a continuidade de medidas estruturantes para esse setor. 

Esse ambiente regulatório, fundamentado em um sistema que exige a comprovação da entrada do material pós-consumo na indústria por meio dos créditos de reciclagem, tem se mostrado extremamente positivo. Além de exigir o cumprimento das obrigações legais e autuar aquelas empresas que seguem em desacordo, o mecanismo agrega valor à cadeia e têm contribuído, em muitos casos, para a melhoria da renda dos catadores.

Além da regulamentação, o poder público tem se mobilizado por meio de diversas iniciativas estaduais voltadas à implementação e aplicação eficaz da legislação, como é o caso de Mato Grosso do Sul, que tem se destacado em sua atuação.

O estado foi pioneiro na implementação de um sistema de logística reversa e foi o primeiro a adotar o Sistema de Logística Reversa (SISREV) –, que depois foi aprimorado pela Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o MMA. Atualmente, o sistema está sendo implementado em onze estados brasileiros.

A iniciativa faz parte do projeto Logística Reversa e Abrampa Circular, que busca promover a justiça socioambiental, contribuindo, de forma justa e sustentável, para o aumento dos índices de reciclagem no Brasil — que hoje são de apenas cerca de 2% a 5%. Entre as ações previstas, destaca-se a colaboração com o MMA para o desenvolvimento de um sistema nacional de controle do sistema de logística reversa, com capacitações para agentes públicos e o fortalecimento das associações e cooperativas de catadores.

Contudo, de nada adiantará estes esforços governamentais e até mesmo avançarmos em aumentar os índices de reciclagem, se não houver, por outro lado, melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores envolvidos na cadeia produtiva da reciclagem. O setor industrial precisa deixar de enxergar os créditos de reciclagem como meras commodities — onde o menor preço prevalece, independentemente da existência de exploração dos catadores.  

Só será possível construir uma cadeia de reciclagem verdadeiramente inclusiva se houver uma mudança de posicionamento do setor produtivo — envolvendo suas áreas de compliance e ESG — em relação à agenda da logística reversa. Essa mudança deve considerar sistemas de remuneração justa, transparência, devida diligência e responsabilidade em toda a cadeia produtiva.

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