Impactos fiscais do usufruto sob a perspectiva dos JCP e dividendos

O usufruto, conforme definido pelo Código Civil[1], é um direito real que permite ao usufrutuário ter a posse, usar, administrar e usufruir dos frutos de um bem, móvel ou imóvel. Essa figura jurídica é especialmente útil em estruturas de planejamento sucessório e familiar, possibilitando, por exemplo, a atribuição ao usufrutuário de direitos econômicos sobre ações ou quotas sem que haja transferência de sua propriedade jurídica.

Existem duas principais formas para um sócio ou acionista obter retorno econômico do seu investimento em pessoas jurídicas: (i) via distribuição de lucros ou dividendos; ou (ii) via recebimento de Juros sobre o Capital Próprio (JCP), mecanismo criado para viabilizar a remuneração pelo capital investido.

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Quando o usufruto é instituído sobre os direitos econômicos de ações ou quotas, uma pessoa ou entidade (usufrutuário) diferente do titular jurídico da participação (nu-proprietário) pode passar a receber rendimentos como dividendos e JCP.

Atendidos os requisitos legais, o valor pago ou creditado a título de JCP é dedutível da base de cálculo do IRPJ e da CSL, nos termos do art. 9º da Lei 9.249/95[2]. Em contrapartida à dedutibilidade, o pagamento está sujeito à incidência de IRF à alíquota de 15% (§ 2º do art. 9º da Lei 9.249/95). No caso de beneficiário pessoa física ou não residente, a incidência do IRF é definitiva. Para pessoas jurídicas brasileiras, é antecipação do IRPJ e da CSL, além do PIS e da Cofins (4,65% no regime do lucro real).

A legislação não trata de forma específica sobre os efeitos fiscais de dividendos e JCP pagos a usufrutuários, o que gerou controvérsias entre contribuintes e autoridades fiscais. As discussões centrais envolvem: (1) a necessidade de reconhecimento e tributação dos valores de JCP no nível do proprietário jurídico, em vez do usufrutuário; e (2) a possibilidade de dedução dos JCP pagos/creditados a usufrutuários pela entidade pagadora.

A questão é especialmente relevante quando o titular jurídico da participação societária é uma pessoa jurídica, mas o usufrutuário é uma pessoa física ou não residente, visto que estes últimos estão sujeitos à carga tributária significativamente inferior[3].

As autoridades fiscais já alegaram, em determinadas autuações, que, apesar de os JCP serem pagos ao usufrutuário, o titular da participação (cedente) deveria considerar tais valores como receita tributável, sob os argumentos de que: (i) o nu-proprietário permanece como o titular formal da participação; e (ii) para fins fiscais, o JCP se vincula à remuneração dos próprios sócios, não havendo base legal para sua extensão a terceiros.

Os contribuintes, por outro lado, sustentam que os valores pagos ao usufrutuário são tributáveis apenas no nível deste último, pois não há ingresso de valores no patrimônio do nu-proprietário, tampouco acréscimo patrimonial. O direito privado permite o usufruto sobre participações societárias, com percepção dos frutos pelo usufrutuário, e a legislação tributária não confere tratamento distinto. Aplica-se, assim, o art. 110 do CTN[4].

Esse entendimento já foi adotado pelo Carf. No Caso Porto Seguro (Acórdão nº 1401-002.081, de 20.9.2017) e no Caso Iupar (Acórdão nº 1402-002.445, de 10.4.2017), reconheceu-se que os rendimentos provenientes dos JCP pertencem ao usufrutuário, afastando a alegação de omissão de receitas pela nua-proprietária. A interpretação parte da premissa de que, na ausência de regra fiscal específica, devem prevalecer os efeitos decorrentes do direito privado[5].

No Caso Itaú (Acórdão nº 1301-002.526, de 26.7.2017), o Carf afirmou que, se determinada entidade não auferiu os rendimentos atrelados aos JCP, não há como tributar esse valor no nível dessa empresa[6]. A ausência de percepção do rendimento inviabiliza a tributação, sendo irrelevante o vínculo formal com as ações ou quotas.

Além disso, tanto no Caso Itaú[7] quanto no Caso Iupar[8], o Carf destacou que não houve imputação de qualquer conduta simulada por parte do Fisco aos contribuintes. Por esse motivo, concluiu-se que as autoridades fiscais não teriam o condão de desconsiderar o usufruto instituído entre os particulares e o seus respectivos efeitos econômicos, uma vez que sequer teria sido alegado que houve simulação, pressuposto mínimo para que a autuação pudesse prosperar.

As autoridades fiscais já alegaram, ainda, que, no caso de distribuição de dividendos a usufrutuário, a isenção prevista pelo art. 10 da Lei 9.249/95 não se aplicaria. A tese era de que a isenção valeria apenas para os titulares da participação societária.

Esse tema foi enfrentado pela CSRF no Acórdão nº 9202-011.429, de 21.8.2024 (Caso Airton Bohrer), no qual foi decidido que, na ausência de regra prevendo tratamento tributário distinto para dividendos pagos a usufrutuário, devem prevalecer os efeitos fiscais típicos, ou seja, a isenção[9].

De fato, o art. 10 da Lei 9.249/95 isenta os lucros ou dividendos pagos pelas pessoas jurídicas, sem restringir tal isenção aos titulares jurídicos da participação societária. Tampouco há exceção no caso de usufrutuários. O único requisito legal para a isenção diz respeito à natureza do valor — lucro ou dividendo —, e não à qualificação do beneficiário.

Assim, não é possível criar distinções sem amparo legal, em respeito ao princípio da legalidade estrita (art. 150, inciso I, da Constituição Federal). O Fisco não pode diferenciar os beneficiários da distribuição para fins de tributação se a lei não o faz.

Outra controvérsia recorrente envolve a dedutibilidade, pela fonte pagadora, dos JCP pagos a usufrutuários. As autoridades fiscais já alegaram em autuações que o JCP só seria dedutível se pago/creditado a sócio ou acionista, com base na redação do art. 9º da Lei 9.249/95, que permite deduzir “os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas”.

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Os contribuintes, contudo, argumentam que o usufruto não altera a essência do JCP, que continua sendo remuneração do capital investido e despesa para a fonte pagadora. Desde que respeitados os requisitos e limites legais, não haveria razão para glosar a despesa.

O Carf, no Caso BTG (Acórdão 1402-003.581, de 20.11.2018), reconheceu que a dedução de JCP pagos a usufrutuários é legítima[10]. O voto vencedor afirmou que não há base legal para excluir o usufrutuário do conceito de “sócio” ou “acionista” e que restringir a dedução violaria o princípio da legalidade estrita[11].

Ainda, no Caso BTG, o Carf também estabeleceu que “o pagamento de JCP para o usufrutuário, na perspectiva da empresa pagadora, é irrelevante sob ponto de vista econômico-financeiro, e não há qualquer ganho fiscal com a mudança do beneficiário”, pois trata-se da mesma despesa, que cumpriu as mesmas limitações legais.

Diante dessas considerações, verifica-se que o tratamento tributário aplicável ao montante de JCP pago a usufrutuário de direitos econômicos de participações societárias demanda atenção particular, dada a ausência de regramento específico na legislação fiscal e a existência de posicionamentos restritivos das autoridades fiscais sobre a dedutibilidade desses valores no nível da fonte pagadora e a sua não tributação no nível da titular jurídica da participação societária (nu-proprietária).

A situação envolve um delicado equilíbrio entre os conceitos de direito privado e as exigências tributárias, e o entendimento consolidado pelo Carf representa um avanço em direção à segurança jurídica dos contribuintes. Com isso, busca-se garantir a previsibilidade dos efeitos fiscais associados ao usufruto sobre direitos econômicos de quotas ou ações, prevenindo que interpretações restritivas das autoridades fiscais comprometam os benefícios desse instituto legal.


[1] Artigos 1.390 e seguintes do Código Civil.

[2] “Art. 9º A pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP.”

[3] Se o titular jurídico da participação societária (nu-proprietário) for pessoa jurídica, sujeita à tributação pelo lucro real, haverá o recolhimento de IRPJ/CSL (34%) e PIS/Cofins (4,65%) sobre valores recebidos a título de JCP, conforme o regime de competência. Por outro lado, no caso de usufrutuário pessoa física ou não residente, a carga tributária aplicável aos JCP seria significativamente inferior (apenas o IRF, à alíquota de 15%).

[4] Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

 

[5] Caso Porto Seguro: “USUFRUTO. NATUREZA JURÍDICA. PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS. O usufruto representa uma divisão das faculdades inerentes ao direito de propriedade, uma vez que o direito real sobre o objeto do usufruto é conferido a outrem, que passa a retirar os frutos e utilidades que a coisa alheia produz, sem alterar sua substância. É da essência do usufruto o aproveitamento dos rendimentos do bem pelo usufrutuário. USUFRUTUÁRIOS. TITULARES DOS JUROS SOBRE CAPITAL PRÓPRIO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO DE RECEITAS PELA      NUAPROPRIETÁRIA DAS AÇÕES. Em virtude da reserva de usufruto dos direitos econômicos, a titularidade dos rendimentos provenientes dos JCP é dos usufrutuários das ações, razão pela qual não há que se falar no reconhecimento de receitas dos JCP pela nua-proprietária. USUFRUTO. JUROS SOBRE CAPITAL PRÓPRIO. TRIBUTAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA LEGISLAÇÃO. No caso dos rendimentos pagos ou creditados a título de lucros/dividendos e de juros sobre capital próprio, o legislador tributário deixou de atribuir ao instituto do usufruto efeitos tributários específicos, o que implica remeter o intérprete aos efeitos típicos decorrentes do direito privado. As normas que estabelecem exceções à tributação ordinária devem ser interpretadas de maneira estrita, não comportando ampliação de conteúdo ou emprego de analogias, assim como inviável também a utilização pelo intérprete de exegese restritiva, para o fim de distinguir onde a lei não distingue.” (não destacado no original)

Caso Iupar: “USUFRUTUÁRIOS. TITULARES DOS JUROS SOBRE CAPITAL PRÓPRIO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO DE RECEITAS PELA NUA-PROPRIETÁRIA DAS AÇÕES. Em virtude da reserva de usufruto dos direitos econômicos, a titularidade dos rendimentos provenientes dos JCP é dos usufrutuários das ações, razão pela qual não há que se falar no reconhecimento de receitas dos JCP pela nua-proprietária. USUFRUTO. JUROS SOBRE CAPITAL PRÓPRIO. TRIBUTAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA. No caso dos rendimentos pagos ou creditados a título de juros sobre capital próprio, o legislador tributário deixou de atribuir ao instituto do usufruto efeitos tributários específicos, o que implica remeter o intérprete aos efeitos típicos decorrentes do direito privado.” (não destacado no original)

[6] Caso Itaú: “A parte a ela atribuída pela Fiscalização como omissão de receitas foi na realidade e efetivamente recebida pela controladora da Recorrente, ITAÚ UNIBANCO HOLDING, ela, sim, real proprietária destas ações e beneficiária do JCP, já que também detinha participações nas duas empresas que pagaram a JCP. Tanto que ela auferiu os rendimentos de JCP, e assim os tributou e também foi retida na fonte. Conforme comprovantes trazidos, AGO e DIPJs (doc. 3 do recurso voluntário). Desse modo, não vejo como possa ter havido omissão de receitas neste caso.”

[7] Caso Itaú: “Ademais, no presente caso, não houve em momento algum a imputação de quaisquer atos simulados, que gerasse algum tipo de dúvida quanto à operação realizada.”

[8] Caso Iupar: “Na lavratura do auto de infração, em momento algum, imputou-se Qualquer ato simulado, como, por exemplo, o fato de os JCP terem sido pagos diretamente aos acionistas da Recorrente (usufrutuários), mas repassados ardilosa e dolosamente para a Recorrente (nua-proprietária).”

[9] Caso Airton Bohrer: “DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS. USUFRUTO DE PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. ISENÇÃO DO IRPF. O art. 10 da Lei nº 9.249/95 não delimitou que o beneficiário da isenção é apenas o detentor direto de quotas do capital social. Neste sentido, os beneficiários que trata o dispositivo são os titulares do direito econômico à percepção dos lucros e, consequentemente, são os titulares do direito à isenção estabelecida pela lei tributária. Os lucros ou dividendos pagos ao usufrutuário de participação societária constituem rendimento não sujeito à tributação pelo imposto de renda, desde que tenham sido calculados com base em resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996.” Entendimento também adotado pelo Carf no Caso BTG (Acórdão nº 1402-003.581).

[10] “USUFRUTO. LUCROS/DIVIDENDOS. JUROS SOBRE CAPITAL PRÓPRIO. TRIBUTAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA. DEDUTIBILIDADE DOS VALORES PAGOS
No caso dos rendimentos pagos ou creditados a título de lucros/dividendos e de juros sobre capital próprio, o legislador tributário deixou de atribuir ao instituto do usufruto efeitos tributários específicos, o que implica remeter o intérprete aos efeitos típicos decorrentes do direito privado. São, portanto, dedutíveis os valores pagos a usufrutuários de ações a título de Juros sobre Capital Próprio (JCP)”. (não destacado no original)

[11] “Assim como decidido no voto acima transcrito, entendo que o legislador não impôs limitações ao recebimento pelo usufrutuário de valores a título de juros sobre capital próprio, que, em razão da instituição do usufruto, a ele pertencem. Restritiva, portanto, a interpretação de que a expressão “acionista”, tal como inserida no caput do art. 9º da Lei nº 9.249, de 1995, diga respeito somente ao beneficiário que detém a participação acionária direta.” (não destacado no original)

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