Legislativo francês aprova PL controverso para resolver desertos médicos

Os desertos médicos estão virando um problema global e sendo seriamente discutidos em diversos países do mundo, tais como no Brasil, na França e no Canadá, para ficar apenas em países com sistemas públicos de saúde robustos e nos quais o debate público está mais acalorado.

Desertos médicos são entendidos como amplos territórios, urbanos ou rurais, onde não se pode encontrar médicos para um primeiro atendimento (médicos clínicos, de preferência) e muito menos médicos especialistas para dar sequência a atendimentos que são bastante corriqueiros e que dependem de continuidade de tratamento com especialistas.

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A ausência de médicos nesses territórios tem como causa diversos fatores, dentre os quais os mais comuns são carência de médicos, distância dos centros urbanos, violência, infraestrutura urbana e hospitalar precárias e retorno econômico não atrativo para estes profissionais. As causas podem ser aplicadas tanto para áreas rurais quanto para as periferias ou áreas violentas das grandes cidades.

Nos desertos médicos faltam, principalmente, clínicos nas portas de entrada dos sistemas de saúde. Mas também faltam pediatras, cardiologistas, dermatologistas, oftalmologistas, cirurgiões, dentre outras especialidades médicas que são necessárias para um cuidado integral do paciente.

A carência de especialistas em alguns territórios se revela mais importante sobretudo quando o paciente possui uma doença específica que deve ser tratada por um especialista, uma vez que nem sempre um médico clínico geral consegue resolver alguns tipos de doenças ou agravos à saúde.

No Brasil o problema é antigo e vem sendo tratado por meio de políticas públicas que visam organizar a rede de atenção e levar médicos para áreas territoriais onde esses profissionais usualmente não querem ir, tais como o Programa Mais Médicos, o Programa Mais Especialistas ou, ainda, através do uso da saúde digital, como o Telessaúde. A ver se tais iniciativas serão suficientes para solucionar os problemas nacionais para a solução dos desertos médicos.

Enquanto acompanhamos as tentativas de solução adotadas no Brasil, vale a pena olhar de que forma os outros países estão enfrentando o problema. Na última quarta-feira (7), a Assembleia Nacional da França deu uma contribuição importante ao debate ao aprovar um projeto de lei bastante controverso para solucionar o problema de instalação de médicos em áreas onde eles são necessários, mas não querem ir.

O projeto de lei aprovado visa combater os desertos médicos por meio de uma iniciativa interpartidária, liderada por Guillaume Garot (Partido Socialista). O texto, que prevê a regulação da instalação territorial dos médicos na França, segue agora para o Senado. O projeto contou com 99 votos a favor, 9 contra e 10 abstenções. Segundo o autor da proposta, a França estaria assim “devolvendo um pouco da República à organização coletiva”.

O texto aprovado cria a necessidade de uma autorização prévia para instalação de médicos no território francês, que será emitida pelas agências regionais de saúde (ARS) após parecer do conselho departamental da ordem competente. Esta autorização será emitida automaticamente em áreas onde a provisão médica for insuficiente. Por outro lado, em áreas com excesso de oferta, esta só será emitida sob a condição de que outro profissional cesse sua atividade, por exemplo, por aposentadoria. Logo após a votação, Garot assim resumiu seu projeto: “Nossa saúde não pode depender do nosso código postal”.

Além da restrição aos direitos de instalação médica no território francês, o texto aprovado prevê treinamento médico para estudantes de primeiro ano de medicina em cada departamento do país, remove o aumento (atualmente vigente) nas tarifas impostas para pacientes que não conseguiram encontrar um médico de atenção primária em razão da oferta insuficiente de cuidados de saúde e restabelece a necessidade de atendimento permanente para “todos os médicos particulares e assalariados”.

Conforme se vê pela imprensa francesa, vários parlamentares expressaram sua satisfação pela aprovação do projeto de lei, de vários matizes ideológicos: “Finalmente contribuiremos para reduzir a inaceitável desigualdade territorial de acesso à saúde em nosso país”, disse Yannick Favennec-Bécot, membro do grupo dos independentes, o LIOT.

“Amanhã, em nossos círculos eleitorais, teremos orgulho de dizer que pelo menos tentamos”, afirmou o socialista Joël Aviragnet.

O ministro francês da Saúde, Yannick Neuder, “elogiou o trabalho do Parlamento”, mas ao mesmo tempo reafirmou sua oposição ao projeto aprovado. Para ele, o combate ao deserto médico será eficaz a partir do momento em que “formarmos mais médicos”.

Nesse caso, o Brasil tem o que ensinar ao ministro francês, já que nem sempre formar mais médicos significa que eles necessariamente irão para as áreas onde os médicos já formados não estão querendo se instalar (razão de criação do programa do Mais Médicos em nosso país).

O ministro da Saúde francês saiu em defesa do “pacto para combater os desertos médicos” apresentado recentemente pelo primeiro-ministro, François Bayrou. Neuder reiterou seu desejo de abolir o controle de abertura de número de vagas para escolas médicas atualmente previsto na legislação francesa (conhecido como “numerus apertus”, sistema adotado também pelo Brasil), e também destacou a ideia de “repatriar os estudantes franceses que foram estudar no exterior”.

O ministro destacou ainda o “princípio da solidariedade territorial” que o governo pretende estabelecer, a partir de setembro próximo, incentivando os médicos a dedicarem até dois dias por mês às áreas com maior carência de serviços médicos.

Além do governo, alguns parlamentares se manifestaram contrários ao texto. Segundo publicado na mídia francesa, a deputada Stéphanie Rist (Juntos pela República) afirmou que o “projeto de lei será ineficaz, regular a escassez não faz sentido”. Cyrille Isaac-Sibille, do partido Os Democratas, alegou que “isso só vai piorar o declínio da medicina privada”.

Apesar da contrariedade do ministro da Saúde e de alguns deputados minoritários, no final dos debates a maioria dos deputados votou esmagadoramente a favor do texto.

O projeto deve continuar seu processo legislativo no Senado francês agora, e vai disputar a atenção dos políticos e do público em geral com um outro projeto de lei em tramitação, apoiado pelo senador Philippe Mouiller (Republicanos), que visa “melhorar o acesso à saúde nas regiões”  e que se beneficiará de um tipo de tramitação acelerada iniciada pelo governo. O texto de Mouiller está sendo analisado no plenário do Senado e pode ser votado antes daquele já aprovado pela Assembleia Nacional.

Enquanto o parlamento francês discute com vigor soluções para um problema real de saúde pública, no Brasil vemos um parlamento sequestrado por pautas que nada dizem ao país, tais como anistia a criminosos que atentam contra o Estado Democrático de Direito, ampliação do sequestro do orçamento secreto por emendas parlamentares que bagunçam a política pública de saúde ou, ainda, o aumento do número de vagas de deputados para as próximas eleições.

Independemente se as ideias em curso na França nos agradam ou não, o que está evidente é que a República Francesa ainda demonstra um vigor democrático ao sediar, no seu parlamento, um debate de alto nível sobre o problema dos desertos médicos, que também nos aflige.

O Brasil possui enormes desafios para a regulação da força de trabalho no país, que vão dos desertos médicos a uma regulação disfuncional dos escopos de práticas das diferentes profissões de saúde pelos conselhos profissionais, passando pelo abuso de poder regulatório desses órgãos em várias ocasiões.

Alguns desafios regulatórios que o Brasil precisa enfrentar para organizar sua força de trabalho em saúde já foram inclusive tratados nesta coluna, e seria muito bom que nosso atual Congresso Nacional se instruísse e se dedicasse, um mínimo que fosse, aos reais problemas nacionais neste campo sensível da saúde pública brasileira.

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