Um dos protagonistas nas reformas tributárias do consumo e da renda nos últimos dois anos no governo, o advogado Daniel Loria, agora de volta ao setor privado com seu próprio escritório, vê com otimismo a implantação da primeira a partir de 2027, mas alerta para alguns riscos e problemas potenciais.
Loria aponta como pontos de atenção as definições sobre o contencioso da CBS/IBS, o risco de muita judicialização de teses, a falta de um andamento mais claro sobre os regimes especiais, entre outros. Ele também adverte para o risco de uma perda de arrecadação do governo na transição da reforma caso os contribuintes fiquem muito ousados em tentar abater seus débitos da CBS com créditos de PIS/Cofins acumulados no regime anterior.
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Sobre a reforma da renda, o especialista acredita que a proposta vai avançar, mas lamenta que as rendas de produtos financeiros isentos tenham ficado fora do alcance do imposto mínimo. Ele também defende que haja adaptações nas regras de cobrança desse imposto nas remessas de dividendos ao exterior, garantindo que ela atenda ao seu objetivo de evitar fugas do imposto mínimo, sem prejudicar ou sobrecarregar as remessas estritamente de pessoas jurídicas.
A CBS começa mesmo em 2027?
Acho que sim, sigo confiante nisso. Dentro da reforma tributária, o que eu tenho visto, já nessa fase de implantação e agora que eu estou fora do governo também: os mundos do regime geral e dos regimes específicos são totalmente diferentes, inclusive em termos da tecnologia que vai ser necessária para colocar isso de pé.
Aparentemente, com base nas informações públicas divulgadas até o momento, está tudo avançando muito bem no regime geral. É aquela história de padronização de nota fiscal, documento fiscal eletrônico, o motor de extração de dados que puxa os dados da nota e alimenta a apuração assistida para o contribuinte, débito e crédito (o débito vinculado a cada documento fiscal, o crédito vinculado ao pagamento do débito, também vinculado a cada documento fiscal). A gente está vendo avanços concretos, reais.
Insegurança de alguns setores
Onde que eu sinto maior preocupação? Quem não fazia créditos e débitos, ou seja, quem estava no regime cumulativo – setor financeiro, administrador de fundos, bancos, etc. Esses que estão hoje no regime totalmente cumulativo estão mais inseguros. Quem não emitia nota fiscal, acho que é um outro grupo que também está mais inseguro. Locação de imóveis, por exemplo, não emitia nota fiscal, vai ter que emitir, como vai ser?
É uma insegurança 100% operacional. Acho que o governo tem feito um bom trabalho, tanto a Receita quanto o Comitê Gestor, de tranquilizar com relação a 2026 [período de testes]. Eles têm falado, “olha gente, isso não é aumento de carga, não vai ter recolhimento de tributo, o valor do tributo não vai acrescer o valor total da nota”. É realmente um período de teste. O fornecedor não vai ter que pagar 1% a mais, você não vai ter que cobrar 1% a mais do seu cliente para isso, é só realmente teste, é só destaque.
Eu tenho visto muita evolução no regime geral, com algumas ansiedades desses setores que ainda não apropriavam crédito, ou que não emitiam nota e vão ter que emitir.
Além do setor de locação, outros dois têm me chamado muito a atenção: concessionárias de serviços públicos, que têm uma série de regimes especiais e não emitem nota fiscal propriamente dita, como distribuidora de gás, de água, de energia elétrica. Eles não emitem nota e terão que emitir. Junto com a locação de imóveis, estão com uma grande ansiedade com relação a isso.
E as plataformas digitais, as empresas de tecnologia, que hoje por exemplo têm milhões de transações e não precisam emitir nota transação a transação. Elas fazem uma emissão agregada, os Estados têm regimes especiais para isso também.
Então, essa turma que tem regimes especiais, regimes simplificados de emissão de nota, está bastante aflita, se tiver que migrar de uma nota mensal para, sei lá, um milhão.[…]Esse é um tema da regulamentação infralegal. O caso das plataformas digitais acho que é um caso clássico. O mundo inteiro discute como pode ser feita uma obrigação acessória, que de um lado atenda o governo, dê as informações, dê o tributo, tudo certinho, e de outro lado não inviabilize o modelo de negócios que está cada vez mais abrangente e disseminado.
Sistema para os regimes específicos
Nos regimes específicos eu não estou vendo ainda uma evolução tão grande. […] Serviços financeiros, por exemplo, tem um regime muito diferente do geral. Tem que ser mesmo, pelos motivos que a gente já sabe: base agregada, tributa o spread, não tributa operação-operação. Eles não vão emitir nota fiscal operação-operação por definição. Eles têm que fazer uma declaração tributária, que deveria ser uma vez por mês. Hoje nos municípios tem uma declaração que se chama DESIF [Declaração de Serviços de Instituições Financeiras]. Então eles estão discutindo de se fazer uma super DESIF pelas instituições financeiras que contemplariam não apenas as tarifas e comissões, mas também as operações remuneradas por margem.[…]Eu não vi nada sobre isso, pode ser que eles estejam trabalhando, mas não vi. Não sei se isso vai estar rodando em 2026.
Para 2027 eu sigo otimista, acho que o governo terá capacidade de entregar e os contribuintes, de implementar.
Riscos do Comitê Gestor
Essas movimentações relacionadas ao comitê gestor do IBS causam apreensão. Se tiver um litígio relacionado à legitimidade do membro do Comitê Gestor, como está sendo noticiado, para o contribuinte vai ser muito ruim. Imagina, você está pagando tributo para um ente legítimo, que se pressupõe legítimo. Se a sua legitimidade for colocada em xeque, como é que fica a arrecadação do tributo para aquele ente? Então isso me causa muita preocupação. Meu medo é o Comitê Gestor não funcionar bem.
Um dos ganhos da reforma é essa cooperação entre os entes, para que, por exemplo, na fiscalização, seja coordenada, seja apenas um auto de infração de IBS […] Se essa estrutura começa a se esfacelar, é um problemão para a reforma.
CBS x IBS e contenciosos
Eu também tenho uma preocupação sobre eventuais distanciamentos entre o IBS e a CBS. O IVA nasceu dual, como gêmeos. Como sociedade, a gente tem que cuidar para que esses irmãos não briguem, não se afastem. A Constituição protegeu muito, disse que o fato gerador é o mesmo, a base de cálculo é a mesma, o contribuinte é o mesmo e tudo mais. Mas, naquilo que não está previsto na Constituição, eu tenho medo de começarem a divergir.[…]Se a gente começa a construir jurisprudências diferentes, vai começar a ficar um mundo maluco. O contencioso deveria ser um só.
A própria fiscalização deveria ser mais otimizada e alinhada entre receita e Comitê Gestor. Autuou para o IBS, deveria autuar para a CBS e vice-versa. Seguindo um padrão.
Não vejo sentido em você ter dois contenciosos, um do IBS e um do CBS, cada um com três instâncias e centenas de servidores nesses órgãos. Também não faz sentido que essa jurisprudência seja harmonizada numa quarta instância, que, por sua vez, é um comitê de harmonização composto pelos fiscais, então, a harmonização da jurisprudência está cabendo a quem não é julgador. Para mim, está muito ineficiente, toda essa estrutura de fiscalização, autuação, contencioso administrativo.
Em tese, daria para resolver na tramitação do PLP 108 no Senado. O senador Eduardo Braga falou que vê com bons olhos que a uniformização da jurisprudência seja feita por uma câmara de julgamento ou pelo comitê. Não faria sentido usar o comitê de harmonização, que é uma espécie de Cosit, da Receita, de função de consulta ou usar este órgão para fazer julgamento. Ele não é um órgão julgador, e sim de fiscais, de aplicação da lei. Então, faria sentido que houvesse uma câmara de julgamento com composição paritária [administração tributária e contribuintes] e votos de qualidade, seguindo o acordo que foi feito no Congresso.
[O sistema] é muito longo, é ineficiente e é muito custoso para os governos federal e estadual porque são estruturas enormes. E é inútil, porque, no final das contas, é o próprio fiscal que vai harmonizar tudo. Acho que o contencioso está muito mal aparado. Não vejo quem ganha com isso.
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Redução de litígios em relação ao sistema atual
O desenho final da reforma tributária vai ser muito positivo para redução de litígios. Tem muito litígio que simplesmente vai desaparecer, especialmente os relacionados a conflitos de competência, entre entes direito a crédito dos tributários e monetização de crédito dos tributários. Essas são temas que a reforma resolveu, de fato, zerou.
Um ponto é que acho que vai ter uma indústria de teses em cima da reforma tributária. Vai ser um ponto interessante de pensar como o Judiciário vai recebê-las, qual vai ser a estratégia do governo, se vai entrar preventivamente com uma ação direta de constitucionalidade ou se vai esperar o avanço de ações diretas de inconstitucionalidade.
Então você tem uma tese, por exemplo, de bitributação, de que você não poderia ter IBS em cima de uma operação que você já tem ITBI, ITCMD ou IOF Crédito. Eu acho essa tese sem pé nem cabeça, os fatos geradores são distintos. Mas é uma tese que, com certeza, vai ser desenvolvida.
E, no nível da lei mesmo, [teremos judicialização sobre] classificação de produtos. Um exemplo são os serviços financeiros. Tarifa, comissão, ficou no regime geral. Operações remuneradas por margem, no regime específico. Só que tem muita coisa em zona cinzenta: se o banco coloca uma debênture no mercado emitido por uma companhia. Isso está no regime geral, ele recebe um fee [comissão] por isso. E também subscreve um pedaço da debênture por um tempo, uma garantia firme. O que prevalece, a natureza de juro da debênture ou a natureza de comissão?
Outros exemplos envolvem a questão da quebra do princípio da neutralidade, no sentido que o tributo não deve influenciar nas decisões de organização da atividade econômica, e também não deveria influenciar nas decisões de consumo. Com tantos regimes específicos e tantas listas, a gente corre esse risco de você ter uma distorção da atividade econômica e de ter uma quebra de neutralidade também.
Impactos econômicos da reforma e risco para o governo
Estou muito otimista. Arrisco a dizer que toda indústria brasileira tem algum problema decorrente do ICMS. E isso vai se endereçar, porque esse tipo de planejamento tributário com danos à produtividade vai perder todo o incentivo.
Mas eu vejo um risco na transição para o governo, porque os créditos de PIS/Cofins a empresa vai poder compensar direto com débito de CBS. Não tem uma homologação prévia como tem no ICMS. Vejo um risco das empresas serem muito arrojadas nos créditos de PIS/Cofins, compensarem débito de CBS e depois deixarem para litigar, em 2027. Seria tomar posições que elas não tomariam antes, como achar que a varrição da calçada não dava crédito e agora achar que dá, etc. Vai se trazer todo o legado do PIS/Cofins de crédito e poder compensar com débito de CBS.
A CBS vai ser calibrada para manter a arrecadação de PIS/Cofins. Se o cara pesa muito a mão no crédito, acho que tem risco de queda da arrecadação [na transição].
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Reforma da renda
Acho que o governo foi inteligente nessa fórmula de tributar dividendos, por dois motivos. Primeiro, porque ele considerou a capacidade contributiva do contribuinte. Ele olhou para a renda total da pessoa física, só alcançou aqueles com renda mais elevada, que é o jeito bom de fazer. E, segundo, que já considerou o imposto que o contribuinte paga nas suas demais fontes de renda.
Também achei bem positiva essa integração com a pessoa jurídica, um olhar em que você considera a carga tributária efetiva da pessoa jurídica como a soma de carga para se chegar a um teto [de 34%]. Você não pode exceder esse teto. Você pegar a alíquota efetiva da empresa é um conceito bom.
Agora, qual é o outro lado da moeda? É a complexidade que isso traz. Como eu vou calcular a [alíquota] líquida efetiva de grandes grupos econômicos, como eu vou fazer o procedimento com os não-residentes, para viabilizar isso com os estrangeiros, e como eu vou controlar a distribuição disfarçada de lucros [DDL]?. Para mim faltou uma regra de DDL, como teve no PL 2337 [2021].
Outro problema é que não tem nenhuma regra que trata da capitalização de lucros seguida da distribuição. O que acontece se eu capitalizo o lucro, já vou tributar 10%, mesmo se eu não distribuir para o acionista? Não tem previsão para isso…Se você precisar converter a reserva de lucro em capital social ou em reserva de capital, entraria o problema.
Imposto mínimo e produtos financeiros isentos
O que me incomoda mais, na verdade, é que a gente está tributando mais investimento em ações e não está mexendo na tributação do investimento em títulos de dívida [porque ficaram de fora do imposto mínimo os produtos isentos]. […]Imagina só, agora que o dividendo é tributado, se passar o projeto, o isento vai ficar muito mais sexy, muito mais atrativo. Para que eu estou querendo títulos isentos? Que benefício eu estou gerando à sociedade? … Eu acho que essa tributação do equity e essa manutenção da isenção na dívida, pelo menos nesses setores, é ruim do ponto de vista da estrutura do sistema tributário e da estrutura de capital das empresas. Essa é a minha principal crítica.
Risco de não avançar as compensações?
Eu diria que não. O ministro Haddad sempre foi muito vocal na necessidade de ter medidas de compensação. As manifestações públicas que eu tenho visto nos parlamentares também vão nesse sentido e querem ter medidas de compensação. Nós todos como sociedade temos que fazer o possível para ter medidas de compensação. E que elas sejam mais justas possível.
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Cobrança em remessas ao exterior
Na minha opinião, precisa ter alguma forma de tributação do dividendo da remessa do exterior, porque se você começa a tributar demais dos seus residentes brasileiros e desonerar demais o estrangeiro, o brasileiro vai virar estrangeiro. […] É importante que haja uma isonomia entre o brasileiro que fica no Brasil e o brasileiro que decide sair do Brasil.
Ao mesmo tempo, tem que ter uma atenção com relação às multinacionais, aos investidores institucionais e tudo mais. No primeiro momento, você pensou que daria para compensar esse tributo lá fora, mas hoje em dia já tem gente falando que não dá, que seria um custo a mais do investimento no Brasil. Então, a gente tem que ter um olhar para isso, porque, até onde eu saiba, não foi intenção do governo onerar mais multinacionais, mas sim pegar esse tipo de movimentação de pessoa física.
Tem algumas soluções técnicas possíveis. Você pode olhar para o beneficiário efetivo. Se for pessoa física brasileira, vai ter incidência. Você pode fazer por um período de tempo, depois que o cara sair do Brasil. Tem uma regra clara do beneficiário final, mantendo o contribuinte com vínculo com o Brasil até cinco anos depois da saída dele, por exemplo.