Está para análise do ministro Kassio Nunes Marques, no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1212. A ação tenta impedir que os municípios operem suas próprias loterias, alegando que isso seria exclusividade da União. Um debate que vai muito além de disputas jurídicas ou mercadológicas. O que está em jogo aqui é uma melhor qualidade de vida para os cidadãos brasileiros.
Primeiro, é importante lembrar que a operação das loterias municipais encontra respaldo na jurisprudência recente do próprio STF. Em 2020, o Supremo julgou as ADPFs 492 e 493, além da ADI 4986. Nessas ações, o questionamento era justamente a possibilidade de os estados operarem suas próprias loterias.
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O STF foi claro: a União tem competência para legislar sobre o tema, mas não tem exclusividade para explorar esse serviço público. Ou seja, estados (e, por consequência lógica, os municípios) têm o direito de operar suas próprias loterias, desde que respeitem a legislação federal vigente.
O ministro Gilmar Mendes, relator da ADPF 492, afirmou que não se pode deduzir da Constituição que a União possa, por meio de uma lei, proibir os demais entes federativos de exercerem uma atividade econômica ou um serviço público autorizado pelo próprio texto constitucional.
Já o ministro Alexandre de Moraes, na ADPF 493, foi além: apontou que impedir os municípios de atuarem nesse campo é uma violação ao pacto federativo. A Constituição, em seu artigo 19, inciso III, proíbe distinções entre União, estados e municípios — e isso vale também para a exploração de serviços como as loterias.
A Constituição Federal também é clara no artigo 30: cabe aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local. Convenhamos, arrecadar recursos para investir em saúde, educação, assistência social e segurança pública é, sim, um assunto de interesse local e urgente. Em tempos de crise, com orçamentos apertados e demandas sociais crescentes, a possibilidade de diversificação das fontes de receita por meio das loterias é uma alternativa legítima e viável.
Na capital gaúcha, o produto da arrecadação da Loteria Municipal de Porto Alegre (Lopa), por exemplo, é direcionado ao custeio do sistema de transporte coletivo, à mobilidade urbana e à inclusão de idosos e pessoas com deficiência. Essa destinação evidencia de forma cristalina o interesse local e o impacto social positivo que as loterias municipais podem oferecer quando bem reguladas e aplicadas com responsabilidade.
O município de Bodó, no Rio Grande do Norte, é outro exemplo. Além de haver triplicado o valor do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) mensalmente repassado à cidade, Bodó possui previsão de destinação das receitas provenientes da LotSeridó para serviços de utilidade pública.
Segundo estudo econômico realizado pela Leme Consultores, a previsão de média anual de GGR (Gross Gaming Revenue, na sigla em inglês) – o faturamento com as apostas menos os prêmios pagos aos vencedores e o Imposto de Renda descontado dos prêmios – é de R$ 1,1 milhão para empresas pequenas; R$ 24,1 milhões para empresas médias; e de R$ 414,9 milhões para empresas grandes.
Considerando que, entre outubro de 2024 e março deste ano, a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) do Ministério da Fazenda derrubou cerca de 12.500 sites, em um cenário intermediário, no qual se assume, em média, dois sites por empresa, estima-se que, com a manutenção das loterias municipais seria possível gerar um incremento de R$ 11,6 bilhões ao ano à União – o que reduziria para 7,9 bilhões, excluindo-se grandes empresas. Ou seja, trata-se de um número considerável que não está sendo arrecadado hoje em razão da desregulamentação do setor.
Para além do incremento financeiro à União, o aumento de arrecadação municipal viabiliza também um maior investimento em ações de combate e prevenção à ludopatia: uma justificada preocupação social. O monitoramento ativo das plataformas e a implementação de medidas eficazes de assistência são fundamentais e, quando o município assume esse protagonismo, o cuidado com o cidadão é mais direto, humanizado e eficiente.
Dificultar a operação legal das loterias locais é uma clara tentativa de concentrar, indevidamente, poderes que a Constituição distribui entre os entes federativos. Operando dentro das regras, com controle e fiscalização, as casas de apostas municipais representam uma nova fronteira de desenvolvimento local. Por isso, é fundamental que o debate sobre esse tema seja pautado pelo respeito às normas constitucionais e pela busca do bem-estar social.
Negar esse direito agora é não só incoerente com o entendimento do próprio STF, como também um retrocesso para o federalismo e para a administração pública eficiente. Chegou a hora de garantir que a autonomia municipal seja respeitada — e que os cidadãos possam apostar, com segurança, no futuro da sua própria cidade.