Mercado de petições judiciais

No último dia 2 de maio, foi noticiado que a 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro determinou a suspensão imediata das atividades da plataforma Resolve Juizado, que vendia petições feitas por inteligência artificial por R$ 19,90. A decisão teria sido proferida nos autos de ação civil pública ajuizada pela OAB-RJ, sob o fundamento de exercício ilegal da advocacia por parte da empresa responsável pelo site[1].

Com efeito, a prática pode ser caracterizada como prestação indevida de serviços jurídicos privativos da advocacia, mesmo se tratando de petições a serem utilizadas em juizados especiais federais. Tal circunstância não passou despercebida pela decisão, muito clara no sentido de que, por mais que o ingresso nos Juizados Especiais Federais dispense a presença de advogado, isso não autoriza a prestação de serviços jurídicos remunerados por quem não é advogado.

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Indo além da questão da reserva de mercado, a decisão se baseou em outros dois fundamentos de extrema relevância para o caso. O primeiro deles diz respeito aos riscos de mercantilização da advocacia, por meio da prestação de serviços equivalentes aos dos advogados sem qualquer controle institucional ou ético[2]:

“A publicidade empregada pela plataforma digital sob o domínio – resolvejuizado. com.br – tanto em seu sítio eletrônico quanto em redes sociais, ostenta claro viés mercantil, ao promover promessas de êxito e simplificação do trâmite judicial, além de divulgar “petições prontas para protocolar” por valores fixos – R$ 19,90. Esta prática é vedada pelos arts. 34, IV e 41, da Lei nº 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia.

A plataforma “Resolve Juizado” promove atividade materialmente equivalente à advocacia, por meio da utilização de publicidade ostensiva, captação ativa de demandas e serviços jurídicos padronizados.

Logo, ainda que em sede de cognição sumária, tem-se que a atuação da plataforma, por sua sistematicidade, ampla publicidade e monetização direta da elaboração de peças jurídicas, compromete o controle institucional e ético sobre a advocacia, e vulnera, em consequência, a confiança legítima do jurisdicionado e a própria função jurisdicional.

O segundo fundamento diz respeito aos riscos aos jurisdicionados e ao regular funcionamento do Poder Judiciário, diante da proliferação de ações com vícios formais e falhas de fundamentação[3]:

“Há ainda potencial prejuízo coletivo à ordem jurídica e ao sistema de justiça, na medida em que tais práticas geram a proliferação de ações com vícios formais e falhas de fundamentação, em manifesta desvirtualização do modelo de acesso facilitado previsto para o procedimento afeto aos Juizados Especiais Federais.”

Por essas razões, a decisão sob exame é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre os efeitos da delegação crescente de atividades humanas para sistemas de inteligência artificial. Tal fenômeno vem atingindo praticamente todas as profissões, incluindo aquelas que, como é o caso da advocacia, são consideradas intelectualmente sofisticadas, o que mostra que a automação, há muito tempo, deixou de ser um problema apenas para as profissões mais simples e menos complexas.

Não obstante, especialmente quando as atividades automatizadas envolvem importantes julgamentos valorativos e interpretações complexas sobre fatos e parâmetros normativos, tal como é o caso das atividades dos advogados, os riscos são ainda maiores. Por essa razão, já tive a oportunidade de alertar, em diversas oportunidades, para os riscos da delegação total do julgamento humano para as máquinas.

Com efeito, embora os sistemas de inteligência artificial possam ser melhores do que os seres humanos em vários aspectos– notadamente pela capacidade de lidar com grandes volumes de dados a partir de padrões e estatísticas e de anular os ruídos que normalmente caracterizam os julgamentos humanos – também apresentam diversos problemas e restrições diante dos julgamentos humanos, além de não poderem trabalhar com uma série de operações intelectuais que, até então, são exclusivas do cérebro humano, como os enquadramentos e juízos sobre causalidades, constrições e contrafactuais[4].

Os riscos da delegação de julgamentos jurídicos para as máquinas envolvem igualmente as diversas alucinações e bizarrices que temos testemunhado cotidianamente[5], com criação de dados ou precedentes jurisprudenciais inexistentes, o que, se não for devidamente contido, pode levar ao caos no sistema de administração de justiça.

Daí por que são corretas as preocupações da decisão sob exame, ao mostrar que o problema da venda de petições judiciais totalmente automatizadas vai além do exercício ilegal da advocacia, trazendo vários outros riscos inerentes à automação em si.

Aliás, tais riscos continuam presentes quando os próprios advogados, ao invés de adquirirem suas petições em sites, aventuram-se a obter petições por meio dos diversos sistemas de inteligência artificial generativa disponibilizados ao grande público.

Outro ponto importante da reflexão é que o mesmo raciocínio pode ser aplicado à utilização crescente de inteligência artificial pelos juízes, já que a atividade jurisdicional é tão privativa deles quanto a atividade advocatícia é privativa dos advogados. Soma-se a isso o fato de que, como funcionários públicos e agentes de Estado que são, a delegação de suas competências institucionais é incompatível com o regime administrativo a que estão submetidos.

Não obstante, o que temos visto é a utilização crescente de inteligência artificial pelo Poder Judiciário sem os devidos cuidados, inclusive mediante o respaldo do CNJ[6]. Assim, decisões como a da Vara Federal do Rio de Janeiro, por mais que sejam acertadas, suscitam a discussão sobre os motivos pelos quais advogados não poderiam terceirizar suas atividades quando os próprios juízes já estão fazendo isso.

Ou resolvemos esse problema de forma estrutural, coerente e compatível com os riscos inerentes à inteligência artificial ou continuaremos a presenciar os efeitos nefastos da automação desmedida e sem controle na área jurídica e em tantas outras áreas.


[1] https://www.migalhas.com.br/quentes/429511/justica-suspende-site-que-vendia-peticoes-feitas-por-ia-por-r-19-90

[2] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2025/5/09C3D4757B4E77_decisao-peticao-jec.pdf

[3] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2025/5/09C3D4757B4E77_decisao-peticao-jec.pdf

[4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/decisoes-algoritmicas-x-decisoes-humanas

[5] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/as-falhas-da-inteligencia-artificial-generativa-do-google

[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/inteligencia-artificial-no-poder-judiciario-2; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/chatgpt-e-sua-utilizacao-pelo-poder-judiciario; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/inteligencia-artificial-no-poder-judiciario

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