O novo indicador da ANS e os riscos de uma regulação mal calibrada

A regulação é, por definição, um instrumento de correção de falhas de mercado e, por isso, quando bem executada, atende aos interesses dos consumidores. Porém, quando mal desenhada, ela deixa de servir ao interesse público e passa a gerar distorções, insegurança e custos desnecessários à sociedade (algo comumente denominado de falhas de governo).

Infelizmente, esse último caso é exatamente o risco que se materializa com a recente alteração normativa promovida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) por meio da Instrução Normativa 36/2024.

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A norma em questão reformulou o modelo de acompanhamento da garantia de atendimento, criando um novo indicador com base na proporção de reclamações classificadas como “não resolvidas” pelos beneficiários, no âmbito das Notificações de Intermediação Preliminar (NIPs).

Utilizando métodos estatísticos como o box plot, a ANS passou a classificar as operadoras em faixas de risco com base na mediana desses indicadores e determinou, como medida administrativa, a suspensão da comercialização de planos por operadoras reincidentes na faixa 3.

À primeira vista, a intenção pode parecer legítima: responder ao crescimento das reclamações dos consumidores. No entanto, sob a ótica da Análise Econômica do Direito da Regulação, trata-se de uma intervenção que ignora critérios mínimos de racionalidade regulatória (seja sob um viés estrito econômico, seja mesmo de economia comportamental), deixando de atender os parâmetros recomendados nos principais guias sobre o tema, especialmente aqueles da OCDE.

Nessa toada, em primeiro lugar, a nova metodologia não distingue entre a percepção subjetiva do consumidor e a efetiva ocorrência de descumprimento contratual. Assim, operadoras que atuam corretamente, mas enfrentam um aumento no número de reclamações por implementarem controles antifraude ou por atenderem públicos mais exigentes, acabam punidas de forma desproporcional.

É bem conhecida a literatura de Kahnemann, Thaler e Sunstein sobre vieses comportamentais e o viés da confirmação de consumidores é um deles. Vale dizer, nem sempre a negativa de cobertura é incorreta, mas, via de regra, ela gera uma percepção de injustiça dos consumidores. E isso é algo que o regulador deve estar atento (behavioral insights).

O desenho dos incentivos está, portanto, profundamente equivocado. Ao basear sanções em percepções – e não em infrações devidamente apuradas –, a ANS desincentiva o aprimoramento da gestão e do controle de custos por parte das operadoras. Incentiva, em última análise, a leniência. O resultado é perverso: operadores que combatem fraudes ou regulam o uso excessivo dos serviços passam a ser vistos como “vilões” e penalizados com restrições comerciais que afetam diretamente a concorrência e a oferta de planos de saúde no mercado.

Em segundo lugar, outro aspecto crítico diz respeito à ausência de Análise de Impacto Regulatório (AIR). Segundo o Decreto 10.411/2020 e a própria RN 548/2022 da ANS, a AIR é obrigatória em casos de normas com potencial impacto relevante sobre o mercado. No entanto, mesmo diante de simulações internas e externas apontando que cerca de 50% dos beneficiários poderiam ser atingidos por suspensões de planos, a ANS dispensou essa etapa essencial.

Tal omissão fere frontalmente os princípios da eficiência, da proporcionalidade e transparência que devem nortear a atuação regulatória em um ambiente democrático e de mercado. Não devemos esquecer que a regra é a não intervenção e que a intervenção deve ser justificada e avaliada sob uma ótica pragmático-consequencialista.

Em terceiro lugar, a sanção (suspensão de comercialização de planos) é absolutamente desproporcional, gerando prejuízo à concorrência e aos consumidores em verdadeiro “efeito bumerangue” (não previstos pelo regulador por ausência de AIR, como comentado acima).

Não bastasse isso, a divulgação dos dados que embasam o novo indicador foi feita de forma tardia e incompleta. As operadoras só tiveram acesso aos indicadores calculados pela nova regulamentação pela ANS de forma atrasada, impossibilitando qualquer planejamento ou simulação prévia com precisão. Trata-se de um grave comprometimento da segurança jurídica, especialmente em um setor já altamente regulado e sensível, como o da saúde suplementar.

Adicionalmente, o método atual despreza o volume absoluto de atendimentos realizados com sucesso. Segundo dados da própria ANS, em 2023 foram realizados milhares de procedimentos pelas operadoras, enquanto o número total de NIPs não resolvidas representaria apenas parte ínfima desse universo.

Ainda assim, essa fração estatisticamente irrelevante poderia servir de base para suspensões generalizadas, afetando inclusive operadoras com excelente desempenho em indicadores como o Índice de Desempenho da Saúde Suplementar (IDSS) e com acreditações concedidas pela própria agência.

A consequência inevitável desse modelo é o risco sistêmico para o setor e, por consequência, para concorrência e para consumidores. Contratos coletivos deixam de poder incluir novos beneficiários, empregadores se veem impedidos de oferecer planos de saúde aos seus funcionários, e operadoras com ampla atuação nacional enfrentam restrições comerciais sem que haja uma análise técnica que comprove risco assistencial efetivo.

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O modelo adotado se afasta da lógica da regulação responsiva — preconizada inclusive pelo Tribunal de Contas da União, além da OCDE — e resgata um paradigma ultrapassado de comando e controle, em que sanções são impostas de forma automática e sem mediação institucional adequada.

Diante desse cenário, impõe-se uma urgente suspensão e revisão da IN 36. O setor privado de saúde suplementar é um pilar essencial do sistema de saúde brasileiro e não pode ser tratado com simplificações estatísticas ou premissas frágeis que não trabalham com evidências científicas. É preciso retomar os fundamentos da boa regulação: análise técnica, impacto econômico, proporcionalidade, respeito à autonomia privada e foco em resultados objetivos, e não meramente em percepções subjetivas.

A regulação não pode ser um instrumento de fragilização da confiança, mas de fortalecimento da previsibilidade e da qualidade institucional. Do contrário, a ANS correrá o risco de comprometer não apenas a eficiência do setor, mas também sua própria credibilidade como autoridade reguladora, assim como causará prejuízos à concorrência e aos consumidores, por via de consequência.

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