Separação informacional de poderes: um conceito em desenvolvimento no STF?

Como instituir uma governança democrática do poder informacional do Estado sem, contudo, impedi-lo de desempenhar suas funções legítimas e essenciais à população?

Esse questionamento vem impulsionando ricos diálogos entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a academia acerca do reposicionamento de “cânones” do Direito Constitucional em face dos efeitos sociais, culturais, políticos e econômicos em torno de inovações tecnológicas, sobretudo diante do poder adquirido pelos atores – públicos e privados – que as controlam. [1]–[2]

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Partindo da premissa de que interesse público, eficiência administrativa e proteção de dados pessoais são elementos convergentes em um regime democrático (e não irreconciliáveis), a real tarefa consiste em equacionar os poderes desse Leviatã com os direitos e as garantias fundamentais dos seus cidadãos.

Poder informacional do Estado

O poder estatal pode se manifestar de diferentes formas e em âmbitos diversos. Contudo, no atual contexto social e tecnológico, o chamado “poder informacional do Estado” se destaca.[3]

Trata-se do “poder oriundo do tratamento de informações e do conhecimento gerado a partir delas”, nas palavras de Laura Schertel Mendes.[4] O seu exercício não representa algo inerentemente ruim, tampouco uma ameaça. Pelo contrário, pode assegurar objetivos amparados na própria Constituição. Por exemplo, o tratamento de dados pessoais dos cidadãos é um componente crucial tanto para a prestação de serviços públicos, quanto para a formulação, implementação e fiscalização de políticas públicas em áreas essenciais como saúde e educação.

Contudo, não se pode conceder um “cheque em branco” ao tratamento de dados pessoais e ao compartilhamento de informações pela Administração Pública. Essa limitação não representa desconfiança em relação aos agentes públicos envolvidos, tampouco descrédito acerca de instituições. Na realidade, a contenção de potenciais desvios de poder ou de finalidade está lastreada no âmago da Constituição de 1988, conforme bem elucidado pela ministra Cármen Lúcia durante julgamento da ADPF 722, de sua relatoria.

Ao discutir a atividade de inteligência desenvolvida pela gestão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, a ministra reafirmou que a “colheita de dados, a produção de informações e o respectivo compartilhamento entre os órgãos” públicos deve ocorrer mediante “estrita vinculação ao interesse público, observância aos valores democráticos e respeito aos direitos e garantias fundamentais”.[5]

Direito fundamental à proteção de dados e legitimidade do poder informacional do Estado

Não por acaso, esses comandos podem ser visualizados no julgamento histórico das ADIs 6387, 6388, 6389, 6390, 6393. Naquela oportunidade, o STF reconheceu um direito fundamental à proteção de dados pessoais – autônomo no texto constitucional – e fixou parâmetros de legitimidade para o exercício do poder informacional do Estado.

Fato esse que, sem dúvidas, impulsionou a posterior promulgação da Emenda Constitucional 115/2022 pelo Congresso Nacional. Desse modo, o art. 5º, inciso LXXIX, da CF/88 passou a assegurar expressamente “o direito à proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.

Com força na autodeterminação informativa dos cidadãos (informationelle Selbstbestimmung), o acórdão acertadamente (i) alargou o escopo de proteção constitucional destinada aos dados pessoais. Isto é, reconheceu que informações como nome, número de telefone e endereço não são “dados insignificantes”. A sua suposta “trivialidade” perde sentido diante da atual capacidade de agregação e de tratamento desses dados a fim de alcançar finalidades distintas da original e, então, conferir-lhes nova atratividade político-econômica.

Assim, o tribunal corretamente rechaçou concepções ultrapassadas sobre a privacidade que a compreendiam a partir de antagonismos como público vs. íntimo ou sigilo vs. publicidade. [6]

Indo além, (ii) o acórdão também demonstrou a dupla dimensão desse direito fundamental. Se, de um lado, exerce o papel de “trunfo” à disposição dos cidadãos contra arbitrariedades estatais (dimensão subjetiva). De outro, também ostenta uma dimensão objetiva, a qual impõe deveres positivos de proteção por parte do Estado. Inclusive, mediante “mecanismos institucionais de salvaguarda traduzidos em normas de organização e procedimento e normas de proteção”.[7]

Portanto, entre outras exigências, o exercício democrático do poder informacional do Estado pressupõe (1) amparo em finalidades legítimas e (2) previsão de medidas adequadas, estritamente necessárias e proporcionais. Além disso, o tratamento de dados pessoais pela Administração Pública deve vir acompanhado de (3) salvaguardas institucionais, protocolos preventivos e mecanismos de segurança para garantir maior transparência e accountability.[8]

Separação/divisão informacional de poderes

O acórdão fruto do julgamento conjunto da ADI 6649 e da ADPF 695 reforçou essa perspectiva objetiva-institucional do direito fundamental à proteção de dados pessoais.[9]

O ministro relator contundentemente rechaçou a retórica dicotômica, segundo a qual o interesse público seria “um bem jurídico a ser tutelado de forma totalmente distinta e em confronto com” a proteção de dados pessoais. Pelo contrário, reafirmou a necessidade de uma “abordagem comunitária e institucional” em relação a esse direito. Isto é, visualizando-o como um objetivo coletivo harmônico com a eficiência administrativa e o interesse público.[10]

Entre outras qualidades, esse robusto acórdão abriu caminho para o desenvolvimento jurisprudencial do conceito de Separação/Divisão Informacional de Poderes. Não há uma definição exata ou taxativa desse conceito. Trata-se de releitura do preceito fundamental da separação de poderes (art. 2º, CF/88) à luz da “configuração digital que o Estado brasileiro tem assumido para poder acompanhar a intensidade das transformações sociais, tecnológicas e tecnopolíticas”, segundo Ingo Wolfgang Sarlet e Gabrielle Bezerra Sales Sarlet. [11]

É dizer: uma ressignificação das funções informacionais do Estado brasileiro e de sua organização político-administrativa à luz da dimensão objetiva-institucional do direito fundamental à proteção de dados pessoais. [12]

Em linhas gerais, esse conceito pretende impedir que o Estado se transforme em uma “unidade informacional”. Isto é, evitando o acúmulo excessivo de dados ou a inexistência de mecanismos recíprocos de controle do tratamento de dados pessoais pela Administração Pública (arts. 7º, 11 e 23 da LGPD). [13]

Por consequência, a legitimidade do tratamento de dados e a legalidade do compartilhamento de informações devem ser escrutinadas à luz das competências legais dos agentes públicos e das atribuições constitucionais dos órgãos envolvidos. E mais: é crucial identificar as reais finalidades desses procedimentos, sobretudo nas hipóteses de compatibilização com usos secundários por outros agentes. Afinal, a sua malversação ocorre comumente sob o pretexto de alcançar objetivos genéricos ou retóricos.[14]

Conclusão

Sobretudo diante da ausência de uma legislação específica sobre proteção de dados pessoais para fins penais e de segurança pública, a jurisdição constitucional ficará encarregada de fixar balizas jurídicas para a governança democrática do poder informacional do Estado brasileiro.

O STF já possui “encontros marcados” com esse tema. Entre tantas outras, a Suprema Corte enfrentará controvérsias sobre, por exemplo: (1) a utilização de programas de intrusão virtual remota e de ferramentas de monitoramento secreto e invasivo de aparelhos digitais de comunicação pessoal (spywares) por agentes e órgãos públicos em face dos arts. 5º, X, XII e LXXIX, da CF/88 (ADPF 1143); (2) a possibilidade e/ou os critérios de acesso a relatórios de inteligência financeira produzidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), sem autorização judicial e mediante mero requerimento dos órgãos de persecução penal – em face desses dispositivos constitucionais e para além do decidido no Recurso Extraordinário 1.055.941. [15]

Nesses e em outros julgamentos futuros, o Supremo não pode perder a oportunidade de contribuir com o desenvolvimento do princípio da separação/divisão informacional de poderes, dialogando com a crescente literatura sobre o tema no Direito Constitucional brasileiro.

Afinal, como bem afirmou o ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADI 6649/DF e da ADPF 695: “Nunca foi estranha à jurisdição constitucional a ideia de que os parâmetros de proteção dos direitos fundamentais devem ser permanentemente abertos à evolução tecnológica”.[16]


[1] PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; KELLER, Clara Iglesias. Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 2648–2689, 2022; GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. Neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva Jur, 2013, p. 207.

[2] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas da internet: o dilema da moderação de conteúdo em redes sociais na perspectiva comparada Brasil-Alemanha. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 31, n. 9, p. 33–68, 2022; HARTMANN, Ivar Alberto Martins; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: a proteção da liberdade de expressão nas mídias sociais. Direito PúblicoBrasília, v. 16, n. 90, 2019.

[3] É verdade que esse poder já se expressava muito antes da chamada ‘Era Digital’. Basta relembrar a importância e a força de estruturas estatais como a Stasi (Staatssicherheitsdienst) na Alemanha Oriental ou o Serviço Nacional de Informações (SNI) no Brasil. Mas, a confluência de inovações tecnológicas e fenômenos sociais como a ‘datificação’ têm alargado o grau de importância desse poder na sociedade e na economia contemporâneas (BIONI, Bruno R; ZANATTA, Rafael A. F. Direito e economia política dos dados: um guia introdutório. In: DOWBOR, Ladislau. Sociedade Vigiada: como a invasão da privacidade por grandes corporações e estados autoritários ameaça instalar uma nova distopia. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 123-125).

[4] MENDES, Laura Schertel. Democracia, poder informacional e vigilância. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2022/08/laura-schertel-democracia-poder-informacional-e-vigilancia.ghtml Acesso em: 01º maio 2025.

[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 722. Rel. Min. Cármen Lúcia, PLENÁRIO, j. 16/05/2022.

[6] Sobre o julgamento, cf.: MENDES, Laura Schertel; RODRIGUES JR., Otávio Luiz; FONSECA, Gabriel Campos Soares da. O Supremo Tribunal Federal e a Proteção Constitucional dos Dados Pessoais: rumo a um direito fundamental autônomo. In: BIONI, Bruno (et.al). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2021.

[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ref. MC ADI 6387. Rel. Min. Rosa Weber, PLENÁRIO, j. 12/11/2020. Trecho extraído do voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes na ocasião.

[8] Sobre o tema, cf. WIMMER, Miriam. Limites e possibilidades para o uso secundário de dados pessoais no poder público: lições da pandemia. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1, 2021.

[9] Naquela ocasião, o STF examinou a constitucionalidade do Decreto 10.046/2019 que instituiu um modelo de governança para o compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal, além de implementar o Cadastro Base Cidadão e do Comitê Central de Governança de Dados. Além disso, apreciou a existência de lesão a preceitos fundamentais no compartilhamento de dados pessoais pelo Serviço de Processamento de Dados (SEPRO) com a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) mediante suposto lastro normativo nesse Decreto.

[10] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADPF 695, Rel. Min. Gilmar Mendes, PLENÁRIO, j. 15/09/2022.

[11] SARLET, Ingo Wolfgang; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. Separação informacional de poderes no direito constitucional brasileiro. São Paulo: Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, 2022.

[12] WOLTER, JURGEN. O inviolável e o intocável no direito processual penal: reflexões sobre a dignidade humana, proibições de prova, proteção de dados (e separação informacional de poderes) diante da persecução penal. GRECO, Luís. (Org.). São Paulo: Marcial Pons, 2018.

[13] MARANHÃO, Juliano; CAMPOS, Ricardo. A divisão informacional de poderes e o Cadastro Base Cidadão. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/a-divisao-informacional-de-poderes-e-o-cadastro-base-do-cidadao Acesso em: 02 maio 2025.

[14] MARANHÃO, Juliano; CAMPOS, Ricardo. A divisão informacional de poderes e o Cadastro Base Cidadão. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/a-divisao-informacional-de-poderes-e-o-cadastro-base-do-cidadao Acesso em: 02 maio 2025.

[15] BORGES, Ademar; LEITE, Alaor.  Jurisdição constitucional hesitante e a tarefa de domesticar a persecução penal no Estado de Direito: o papel da jurisdição constitucional na construção de fronteiras entre inteligência financeira e persecução penal. REI – Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 342–374, 2024; ESTELLITA, Heloísa; VIANA, Eduardo; GLEIZER, Orlandino. Fusão informacional entre agência de inteligência financeira e agentes de persecução penal. 16/05/2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-16/fusao-informacional-entre-agencia-de-inteligencia-financeira-e-agentes-de-persecucao-penal/ Acesso em: 2 maio 2025.

[16] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 695, Rel. Min. Gilmar Mendes, PLENÁRIO, j. 15/09/2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15351694176&ext=.pdf Acesso em: 01º maio 2025.

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