Prezados leitores,
Para que seja legítima a atividade executória, é indispensável, primeiro que o credor exiba um título e, depois, que o referido título seja executivo, significando que é portador dos requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade.[1] Mas será que é exatamente isso?
A expressão “título certo, líquido e exigível”, amplamente difundida na prática forense, na jurisprudência, e em parte da doutrina processualista, encerra, em verdade, uma impropriedade conceitual que se perpetuou ao longo das décadas. A rigor, não é o título em si que deve ostentar as qualidades da certeza, liquidez e exigibilidade, mas sim a obrigação nele consubstanciada.
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O título executivo, na sistemática processual brasileira — seja ele judicial ou extrajudicial —, configura-se como o instrumento formal que documenta uma obrigação, conferindo-lhe aptidão para a execução forçada. Contudo, o que efetivamente se exige, para a instauração da execução, é que a obrigação nele retratada apresente os atributos necessários à sua imediata exigibilidade: a certeza quanto à existência da relação obrigacional; a liquidez, traduzida na determinação de seu objeto e de seu valor; e a exigibilidade, manifestada na ausência de qualquer condição suspensiva ou termo que impeça a pretensão executiva.
Dinamarco já advertia sobre essa impropriedade, indicando que a razão da confusão era a redação antiga do artigo 586 do CPC/73, que previa que o título executivo deveria ser líquido certo e exigível.[2] O autor apontou que andou mal a lei processual, pois as qualidades da liquidez, certeza e exigibilidade não se referem ao título em sentido formal, ao ato jurídico dotado de eficácia executiva, mas ao seu conteúdo, ao seu direito subjetivo atestado.[3]
Em todo o caso, o Código de Processo Civil de 2015 corrigiu o equívoco e dispôs em seu artigo 783 que “a execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível”.
Esses requisitos garantem que o credor tenha um instrumento com uma obrigação clara e precisa para buscar a satisfação de seu crédito, proporcionando segurança jurídica e celeridade ao processo e, justificando, assim, a existência de um rito diferenciado para o processo de execução.
A certeza refere-se à existência indiscutível da obrigação. Ou seja, o título executivo deve demonstrar, de forma inequívoca, que há uma obrigação a ser cumprida. Por meio desse requisito impede-se que o devedor questione a existência da dívida, já que esta deve estar claramente expressa no título. Por exemplo, um cheque assinado pelo devedor e que não tenha sido pago é um título executivo que evidencia a certeza da dívida, pois demonstra uma obrigação clara e existente.
Assim é que a obrigação se qualifica como certa quando está determinada em relação a sua qualidade, o que implica que o objeto da prestação se encontre perfeitamente delimitado ou individualizado. Permite-se, portanto, que se saiba precisamente o que se deve (an debeatur).[4]
Já a liquidez diz respeito à determinação exata do valor devido. Um título executivo deve indicar de maneira precisa o montante que o devedor deve pagar ao credor (quantum debeatur). A liquidez é fundamental para evitar discussões sobre o valor da dívida, permitindo que o processo de execução seja mais rápido e eficaz. A falta de liquidez pode implicar a necessidade de uma fase prévia de liquidação – quando se trata de título executivo judicial –, na qual se determinará o valor exato a ser cobrado.
A obrigação será líquida quando se encontra determinada em relação a sua quantidade, possibilitando que se saiba exatamente o quanto se deve, ou quando essa quantidade é facilmente determinável através de uma operação de simples cálculo aritmético, a partir de elementos constantes do próprio título.[5]
O requisito da exigibilidade, por sua vez, está relacionado à possibilidade de imediata cobrança da obrigação. Para que um título seja exigível, a obrigação nele contida deve estar vencida e não pode estar sujeita a nenhuma condição ou termo que impeça sua cobrança.
A exigibilidade garante que, uma vez preenchidos os demais requisitos (certeza e liquidez), o credor possa imediatamente demandar o cumprimento da obrigação, sem ter que esperar o vencimento de algum prazo ou a ocorrência de um evento futuro.
Como afirma Dinamarco, a exigibilidade não se relaciona com a identificação do direito que vai à execução, nem para estabelecer contornos do processo executivo. Ela diz que é chegado o momento da satisfação da vontade concreta, sem que haja mais qualquer impedimento legal.[6]
Pode-se afirmar que a certeza, a liquidez e a exigibilidade da obrigação são os pilares que sustentam a força executiva de um título. Esses requisitos asseguram que o título executivo seja um instrumento eficaz para a satisfação dos créditos, proporcionando ao credor a possibilidade de buscar a tutela jurisdicional de forma célere (por meio de um procedimento mais rápido) e segura (utilizando-se de um meio que dispensa a um juízo declaratório de existência da dívida).
A ausência de qualquer um desses requisitos pode comprometer a viabilidade da execução, exigindo que o credor recorra ao processo de conhecimento para constituir ou adequar o título antes de promover a execução forçada.
Em resumo, por “certo” entende-se o “título” que contenha uma obrigação clara e existente, sem que sua eficácia esteja subordinada a outros elementos pendentes de acertamento; por “líquido”, aquele que contenha uma obrigação consistente em um objeto conhecido e convenientemente individualizado; e por “exigível”, aquele que corresponda à obrigação atual e vencida.
Dessa maneira, a qualificação do título como “certo, líquido e exigível” revela-se tecnicamente imprecisa, uma vez que tais predicados recaem sobre o conteúdo obrigacional nele formalizado, e não sobre o título enquanto documento. O título é, em essência, o veículo de exteriorização da obrigação, não sendo, ele próprio, sujeito das características mencionadas, mas sim o objeto jurídico que veicula.
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O reconhecimento dessa distinção não é meramente semântico, mas possui relevante repercussão prática e teórica, na medida em que orienta a análise da executividade do título, a delimitação do contraditório na execução e a adequada compreensão dos pressupostos da atividade executiva, em estrita observância ao princípio da legalidade processual.
Assim, no rigor técnico-jurídico, impõe-se afirmar que a certeza, a liquidez e a exigibilidade são atributos da obrigação representada no título, e não do título em si, cuja função precípua é documentar, de forma idônea, a existência de uma obrigação apta à execução.
[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. O processo de execução e as garantias constitucionais da tutela jurisdicional in O Processo de Execução – Estudos em homenagem ao professor Alcides de Mendonça Lima. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1995, p. 163.
[2] No direito português, o Código de Processo Civil utiliza a denominação correta ao referir que a o exequente deve dispor de um título executivo que contenha uma obrigação certa, exigível e líquida (arts. 10, nº 4 e 703).
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil (…). Ob. cit., p. 487.
[4] GONÇALVES, Marco Carvalho. Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Almedina, 2017, p. 134.
[5] GONÇALVES, Marco Carvalho. Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Almedina, 2017, p. 144.
[6] DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil (…). Ob. cit., p. 486.