O Supremo Tribunal Federal retomou, no último dia 9 de abril, o julgamento de um conjunto de recursos interpostos por ex-executivos da Odebrecht, os quais discutem o momento apropriado para a efetivação da perda de bens e valores prevista em acordos de colaboração premiada.
O caso diz respeito a seis recursos interpostos contra decisões do relator, ministro Edson Fachin, que determinaram a perda de bens de colaboradores da Operação Lava Jato antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. O ministro Gilmar Mendes inaugurou a divergência, ao sustentar que a cláusula que impõe a perda imediata dos bens afronta o princípio da legalidade, por representar o cumprimento antecipado de sanção penal sem amparo em decisão definitiva.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Diante desse cenário, é cabível a execução de obrigações pecuniárias estabelecidas em acordos de colaboração premiada mesmo sem decisão condenatória?
A cessação da atividade delitiva pelo colaborador constitui premissa inafastável para a celebração válida de um acordo de colaboração premiada. Esse dever decorre diretamente dos princípios da lealdade e da boa-fé, que orientam a dinâmica negocial do instituto. Nesse contexto, torna-se imprescindível a busca pela “recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações penais”.
Tal finalidade, de natureza patrimonial, concretiza-se por meio das obrigações pecuniárias assumidas pelo colaborador no ato da formalização do acordo. Essas obrigações representam os efeitos patrimoniais da colaboração premiada e traduzem o compromisso do colaborador com a reparação dos danos causados e a restituição de bens ou valores indevidamente obtidos em decorrência da prática delituosa.
As obrigações pecuniárias previstas em um acordo de colaboração premiada podem ser classificadas em três categorias distintas: sancionatórias, ressarcitórias (ou reparatórias) e de perdimento. A obrigação sancionatória possui natureza penal e deve ser estipulada em consonância com os objetivos preventivos – tanto gerais quanto especiais – das sanções criminais.
A obrigação ressarcitória ou reparatória, por sua vez, refere-se ao dever do colaborador de indenizar os danos causados pela prática delituosa ou de ressarcir a vítima. Trata-se de obrigação de natureza cível, cujo fundamento normativo encontra-se no artigo 927 do Código Civil. Já a obrigação de perdimento, também de natureza penal, tem por finalidade impedir o enriquecimento ilícito do colaborador em razão de bens ou valores obtidos com a atividade criminosa.
A distinção quanto à natureza jurídica de cada uma dessas obrigações influencia diretamente o momento em que podem ser exigidas. No caso das obrigações sancionatórias, como a pena de multa, a execução está condicionada à existência de uma sentença penal condenatória, proferida ao término de processo em que tenham sido assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Já as obrigações de natureza ressarcitória e de perdimento são exequíveis após a homologação da colaboração, conforme previsto nas cláusulas do acordo, com o objetivo de impedir que o colaborador se beneficie dos frutos da infração penal — seja por meio da reparação do dano, seja pela perda dos bens ilícitos.
Diferem das obrigações sancionatórias, que envolvem o direito à liberdade e exigem sentença condenatória, pois têm natureza patrimonial e efeitos civis, podendo ser exigidas independentemente de condenação penal definitiva. A reparação de danos ou o ressarcimento à vítima está prevista no art. 927 do Código Civil, que admite responsabilidade objetiva nos casos definidos em lei.
Nesse sentido, o art. 4º, inciso IV, da Lei 12.850/2013 estabelece que o colaborador terá direito aos benefícios legais se sua colaboração resultar, entre outros efeitos, na recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações cometidas pela organização criminosa.
A obrigação de reparar o dano, por configurar medida de recomposição do status quo ante, não exige condenação penal prévia. Como obrigação cível, prescinde de juízo sobre a culpabilidade do colaborador, sendo exigível com base nos prejuízos causados e no compromisso assumido no acordo, independentemente do trânsito em julgado.
A obrigação de perdimento, também fundamentada no artigo 4º, inciso IV, da Lei 12.850/2013, possui natureza penal e tem como finalidade evitar o enriquecimento ilícito direto do colaborador em razão da atividade criminosa.
Atualmente, a perda de bens provenientes de infrações penais é reconhecida como um instrumento eficaz no combate à criminalidade organizada e aos crimes econômicos, conforme será demonstrado abaixo.
No âmbito da colaboração premiada, embora a obrigação de perdimento também ostente natureza penal, sua aplicação não se confunde com a prevista no Código Penal, que depende de sentença condenatória transitada em julgado. Quando pactuada no acordo e devidamente homologada, a perda de bens pode ocorrer antes da condenação, com o objetivo de impedir que o colaborador usufrua de vantagem patrimonial obtida por meio de condutas delituosas.
A colaboração premiada, enquanto instrumento de justiça penal negocial, está pautada no princípio da cooperação processual. Nessa lógica, o perdimento de bens e valores constitui um dos principais resultados a serem buscados por meio do acordo.
Postergar a efetivação do perdimento até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória compromete a utilidade do acordo, pois impede a verificação tempestiva de sua eficácia prática. A perda patrimonial pactuada não se vincula ao mérito das condutas criminosas narradas, mas à ilicitude da origem dos bens, reconhecida expressamente pelo próprio colaborador.
É preciso distinguir o mérito penal, que se traduz na responsabilização e na aplicação de sanções corpóreas e pecuniárias sancionatórias — e que depende de juízo condenatório —, da questão patrimonial relacionada ao perdimento. Esta última trata exclusivamente da origem ilícita dos bens e, portanto, constitui matéria de natureza patrimonial, dissociada do direito à liberdade e passível de execução mesmo sem decisão penal definitiva.
Importa salientar que a colaboração premiada, enquanto mecanismo de justiça penal negocial e forma de diversão processual, compartilha características com institutos como a transação penal, a suspensão condicional do processo e o acordo de não persecução penal. Em todos esses casos, a exigência de prévia reparação do dano configura requisito de admissibilidade, independentemente da existência de sentença penal condenatória.
Condicionar o perdimento de bens, cuja origem ilícita foi expressamente reconhecida pelo colaborador, à prolação de decisão condenatória definitiva cria um cenário de permissividade institucional. Tal postura legitima, ainda que indiretamente, o usufruto de bens sabidamente ilícitos, afrontando não apenas o senso de justiça social, mas também comprometendo a finalidade do próprio acordo, ao permitir a preservação dos ganhos da atividade criminosa.
Outrossim, o enfrentamento à corrupção e ao crime organizado constitui desafio global que demanda instrumentos normativos eficazes. Entre as estratégias mais relevantes, destaca-se a asfixia financeira de organizações criminosas e indivíduos beneficiados por ilícitos, sendo o perdimento de bens declarado uma ferramenta central nesse esforço de contenção patrimonial.
Estudos apontam o impacto econômico significativo da criminalidade. Em 1999, o FMI estimou que a lavagem de ativos movimentava entre US$ 500 bilhões e US$ 1,5 trilhão, cerca de 5% do PIB global à época. No Brasil, a Fiesp estimou em 2009 que o custo anual da corrupção foi de R$ 41,5 bilhões.
Frente a esse cenário, o processo penal busca conciliar os direitos fundamentais do acusado com a atuação estatal eficaz, promovendo segurança jurídica à sociedade e às vítimas. A tradicional ênfase na autoria e materialidade evoluiu para abarcar uma dimensão patrimonial, com foco em mecanismos de asfixia financeira da criminalidade econômica.
Diante desse cenário, a Constituição Federal de 1988 prevê a perda de bens como efeito secundário da condenação penal (art. 5º, incisos XLV e XLVI), além do confisco de propriedades usadas no tráfico de drogas e trabalho escravo, com destinação social (art. 243), evidenciando seu caráter repressivo e redistributivo.
O confisco de bens no ordenamento jurídico brasileiro assume várias modalidades. O confisco clássico, previsto no art. 91 do Código Penal, alcança bens diretamente ligados ao crime. O confisco subsidiário, introduzido pela Lei 12.694/2012, permite apreensão de valores equivalentes ao produto do crime quando os bens não são localizados ou estão no exterior. Já o confisco alargado (art. 91-A, incluído pela Lei 13.964/2019) aplica-se quando o patrimônio do condenado supera seus rendimentos lícitos, exigindo prova da origem dos bens.
Há, ainda, confisco em leis especiais. A Lei 9.613/1998 autoriza a perda de bens direta ou indiretamente ligados ao crime, mesmo sem comprovação de licitude. A Lei 11.343/2006 prevê confisco com alienação antecipada, e a Lei 9.605/1998 trata do confisco de instrumentos de infrações.
Nos acordos de colaboração premiada, lida-se com bens e vantagens cuja origem ilícita é reconhecida pelo próprio colaborador, condição essencial para a celebração do pacto e fundamento para a concessão de benefícios legais. Nessa perspectiva, é imprescindível recordar que as obrigações pecuniárias assumidas nesses acordos, embora relacionadas a efeitos de infrações penais, não se confundem com sanções penais em sentido estrito.
Ademais, a preservação da segurança jurídica, princípio basilar dos negócios jurídicos processuais, impõe o respeito às cláusulas pactuadas no acordo, inclusive quanto ao cumprimento imediato das obrigações de natureza patrimonial. Adotar entendimento em sentido contrário comprometeria a eficácia da colaboração premiada, fragilizando sua utilidade prática e esvaziando seu potencial como ferramenta de combate à delinquência econômica.