Com o julgamento do Recurso Extraordinário 1.489.562, afetado como Tema da Repercussão Geral 1.338, o Supremo Tribunal Federal (STF), com uma única decisão, flexibilizou o conceito de coisa julgada – um dos mais rígidos institutos do ordenamento jurídico vigente, e, com isso, criou um grave cenário de insegurança jurídica no Brasil, ao permitir que a União ajuíze ações rescisórias em face de decisões transitadas em julgado, com base na modulação de efeitos do Tema 69, modulação que sequer existia ao tempo em que as decisões que se pretende rescindir foram proferidas.
Para melhor visualização dessa discussão é necessário um rápido olhar ao passado, quando do julgamento do julgamento do Tema 69, conhecido como a “tese do século”. Isso porque, naquela ocasião, diante da fixação de tese favorável à pretensão defendida pelos contribuintes, nota-se que a Suprema Corte se viu diante de um impasse: como lidar com a alegação da União de que essa decisão impactaria drasticamente os cofres públicos.
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A solução foi restringir os efeitos do Tema 69. Nesse momento surgiu um segundo dilema: como lidar com as decisões transitadas em julgado que estivessem em desacordo com a modulação definida pelo STF naquele tema?
Afinal, entre o julgamento do mérito do Tema 69, que estabeleceu uma tese favorável aos contribuintes e a modulação dos efeitos dessa decisão, diversas ações já haviam transitado em julgado em favor dos contribuintes sem que a modulação tivesse sido observada.
Diante dessa situação, a União buscou reverter as decisões transitadas em julgado durante esse período. Ao analisar a controvérsia, o STF confirmou a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória para adequar essas decisões ao entendimento da modulação dos efeitos do Tema 69.
Em uma análise crítica dessa decisão, é possível concluir que ela representa uma séria afronta à segurança jurídica, instituto fundamental para o funcionamento do Estado de Direito e para a confiança da sociedade no Judiciário.
Coisa julgada: pilar da segurança jurídica ou conveniência?
A coisa julgada, princípio consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, tem como uma de suas funções essenciais garantir que as decisões judiciais definitivas não sejam revistas a todo momento. Quando uma decisão transita em julgado, significa que o Estado reconhece a imutabilidade daquela sentença, conferindo estabilidade aos direitos envolvidos e protegendo as expectativas legítimas dos cidadãos e empresas. É dizer: a coisa julgada torna até mesmo o quadrado, redondo.
Nesse sentido, a decisão do STF no RE 1.489.562 coloca em xeque essa premissa, ao permitir que a União ajuíze ações rescisórias para modificar o que já foi decidido de forma definitiva. A pergunta que surge é: qual é o valor de uma decisão judicial que pode ser revista sempre que o Supremo mude de ideia?
Se decisões transitadas em julgado, que deveriam ser definitivas e imutáveis, podem ser desconstituídas por ações rescisórias em casos como esse, da “tese do século”, a coisa julgada deixa de ser uma garantia para se transformar em uma mera conveniência. Isto é, a decisão judicial deixa de ser confiável, gerando insegurança jurídica e desestabilizando a própria confiança na justiça.
Modulação de efeitos da tese do século e a falácia do ‘ajuste’
A tese do século, que tratou da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, foi decidida pelo STF em 2017 e teve seus efeitos modulados em 2021. Essa modulação teria por fim gerar um equilíbrio entre a jurisprudência até então vigente e a tese fixada no Tema 69, evitando um impacto retroativo sobre os direitos de quem já havia se pautado pela interpretação anterior.
No entanto, ao permitir o ajuizamento de ações rescisórias e, por conseguinte, a revisão de decisões transitadas em julgado, o STF desrespeita a finalidade da modulação e cria uma brecha que pode ser usada para reverter quaisquer decisões anteriores que estejam em desacordo com sua nova interpretação, gerando um efeito cascata de insegurança jurídica.
O argumento de que seria necessário “ajustar” as decisões anteriores à nova modulação não se sustenta, visto que a função da modulação é justamente preservar as decisões que se consolidaram ao longo do tempo, sem afetar retroativamente os direitos adquiridos.
Impacto econômico e prejuízo ao setor privado
Além dos aspectos jurídicos, essa decisão tem um impacto econômico significativo, especialmente no que diz respeito aos contribuintes que haviam planejado suas finanças e negócios com base nas decisões favoráveis que lhes garantiram a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e Cofins e o direito à repetição desse indébito.
Esses contribuintes, que já haviam obtido créditos com base em decisões definitivas, agora se veem à mercê de um retrocesso judicial que pode colocar em risco seus direitos. O planejamento tributário, que é uma ferramenta legítima para garantir a competitividade e a sustentabilidade financeira das empresas, perde a sua eficácia e previsibilidade quando decisões do STF podem ser revistas a qualquer momento.
Trata-se de um perigoso precedente que afeta a confiança dos contribuintes no sistema judicial. Empresas e cidadãos, ao se depararem com a possibilidade de que decisões judiciais definitivas possam ser modificadas retroativamente, podem passar a questionar a segurança de qualquer decisão tomada, o que prejudica ainda mais o ambiente econômico e jurídico do país.
O fato de o Supremo poder, a qualquer momento, autorizar o ajuizamento de ações rescisórias contra decisões definitivas, coloca em risco a estabilidade das relações jurídicas no Brasil.
Além disso, a falta de clareza em relação aos prazos para o ajuizamento da ação rescisória e a aplicação do instituto ao mandado de segurança, especialmente em relação ao artigo 535, do Código de Processo Civil, que trata da fase de cumprimento de sentença, contribui para aumentar a confusão e a insegurança em torno da questão.
Esses detalhes técnicos, que ainda precisam ser esclarecidos, não deveriam sequer estar em pauta, pois a questão central é a própria desestabilização da coisa julgada, que deveria ser uma garantia constitucional imutável.
Um ataque à imutabilidade da justiça
Mais do que uma questão técnica ou jurídica, a decisão do STF no Recurso Extraordinário 1.489.562 representa um ataque ao próprio conceito de justiça, que deveria ser imutável em aspectos fundamentais, como as garantias constitucionais da coisa julgada.
A segurança jurídica, essencial para a confiança dos cidadãos e para o funcionamento das instituições, foi comprometida por uma decisão que relativiza a imutabilidade das decisões judiciais, criando um cenário de incerteza e insegurança institucional.
Se a cada mudança jurisprudencial for permitido rever decisões já transitadas em julgado, o sistema jurídico brasileiro perderá sua credibilidade e a confiança da sociedade nas instituições será abalada. Ao permitir esse retrocesso, o STF compromete a estabilidade do país, que depende de um sistema judicial confiável e previsível para a sua organização social e econômica.