No último dia 24 de abril, a Mesa da Câmara dos Deputados declarou a perda do mandato eletivo do deputado João Francisco Inácio Brazão, o Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), com fundamento no artigo 55, inciso III, da CF, pelo qual perderá seu mandato o parlamentar que deixa de comparecer, em cada sessão legislativa, a 1/3 das sessões ordinárias da Casa a que pertence, salvo licença ou missão por esta autorizada.
Como sabido, nessa hipótese, a perda do mandato é simplesmente declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa (artigo 55, § 3º, da CF).
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O caso Brazão já tinha sido objeto de comentário em coluna passada. O deputado é acusado de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora do Município do Rio de Janeiro, Marielle Franco (PSOL), e do motorista Anderson Gomes, em 2018. O episódio ocorreu antes da sua diplomação. Nada obstante, a prisão preventiva de Brazão foi determinada pelo STF, no âmbito do Inq 4954, em março de 2024, a partir de quando o deputado ficou preso na Penitenciária de Campo Grande (MS). Em meados de junho, a denúncia foi recebida, passando a tramitar como AP 2434.
No início do mês de abril de 2025, Brazão voltou a ser notícia, quando o ministro relator autorizou sua ida para prisão domiciliar, com a imposição de medidas cautelares de uso de tornozeleira eletrônica, proibição de utilização de redes sociais, de comunicar-se com outros envolvidos, de conceder entrevistas e de receber visitas, salvo de seus advogados, irmãos, filhos e netos. Na decisão, motivou-se seu caráter humanitário, porque o deputado é portador de doença arterial crônica, com obstrução de duas artérias, implante de stents, com lesões que podem evoluir, além de diabetes, nefropatia e hipertensão.
Pois bem. A declaração da perda do mandato direto pela Mesa da Câmara, com a utilização do fundamento do excesso de faltas, é mais uma novidade difícil de justificar no regramento das prerrogativas parlamentares. Por um lado, a medida livra o plenário da Casa Legislativa do desgaste de apreciar o pedido de cassação do deputado formulado pelo PSOL desde 27 de março de 2024. Por outro lado, implica um resultado prático perigoso.
Como sabido, a Representação 4/2024 do PSOL já tinha tramitado pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar (COETICA), que aprovou o parecer recomendando a perda do mandato do deputado Chiquinho Brazão com 15 votos favoráveis, 1 contrário e 1 abstenção. Na ocasião, a defesa chegou a argumentar que, para que haja a quebra de decoro parlamentar, os atos imputados devem ter relação direta com o exercício do mandato em curso.
Entretanto, a alegação foi rebatida com a afirmação de que “a assunção a um mandato parlamentar não pode, em hipótese alguma, ser tratada como uma espécie de perdão automático para atos condenáveis cometidos no passado.
A eleição para um cargo público, especialmente no âmbito legislativo, não deve servir como um meio para apagar ou relevar faltas graves que comprometem a integridade e a imagem do parlamento. Um mandato eletivo carrega consigo a responsabilidade de honrar e proteger a dignidade de uma instituição que é permanente, representando o povo e a democracia”.
O fato é que, desde setembro de 2024, a matéria estava pronta para ir a plenário. Mas, com a perda de mandato declarada pela Mesa, agora o pedido de cassação do PSOL perdeu o objeto.
Como o fundamento da perda do mandato foi o excesso de faltas (artigo 55, inciso III) – e não a quebra de decoro parlamentar (artigo 55, incisos I e II) – o resultado prático no caso é o de que o agora ex-deputado Brazão não será alcançado pela inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, com redação dada pela LC 81/1994. O assunto e a constitucionalidade da previsão legal já foram tratados aqui em relação ao caso Eduardo Cunha.
Outro problema dessa decisão da Mesa também reside no precedente que gera para casos futuros, na medida em que acaba convertendo a perda do mandato em um efeito automático e irreversível – atenção, não de uma condenação criminal transitada em julgado, o que também resultaria equivocado, como já foi devidamente explicado aqui –, mas sim de uma prisão preventiva do parlamentar, subvertendo toda a lógica do constituinte originário na matéria.
O mandato do parlamentar que está sendo processado criminalmente até pode ser cassado pela própria Casa Legislativa antes do fim julgamento judicial. Não é essa a questão. O ponto é que a decisão precisa ser dentro do processo por quebra de decoro correspondente, não de ofício pela Mesa. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a cassação do mandato da deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada pelo MPRJ de ser a mandante do assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, em junho de 2019.
Quando da sua cassação pelo plenário da Câmara dos Deputados (com 437 votos favoráveis, 7 contrários e 12 abstenções) em agosto de 2021, ainda não tinha havido condenação judicial. Inclusive, nesse caso, a Representação 2/2021 foi de autoria da própria Mesa da Câmara dos Deputados. O caso Flordelis é que deveria ser o parâmetro para o caso Brazão.
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É claro que a prisão do parlamentar não figura na CF como justificativa para abonar as faltas às sessões. Entretanto, a rigor, a prisão preventiva do parlamentar sequer teria cabimento no texto constitucional, como já explicado aqui e várias vezes repetido: pelo artigo 53, § 2º, os parlamentarem somente poderiam ser presos em flagrante de crime inafiançável.
Nesse contexto, a perda do mandato por excesso de faltas do parlamentar preso provisoriamente fora das hipóteses constitucionais (por mais grave que seja a acusação que lhe é feita, ainda assim) acaba chancelando, no Poder Legislativo, a construção hermenêutica do Poder Judiciário restritiva das prerrogativas parlamentares e inúmeras vezes criticada neste espaço.
Além disso, é curioso notar que, em situações passadas, como o caso do deputado Daniel Silveira, preso preventivamente em fevereiro de 2021, não se cogitou de cassar o parlamentar por suas “ausências não justificadas”. Entretanto, doravante, o próximo parlamentar que venha a ser preso cautelarmente estará correndo o risco de ter a perda do seu mandato declarada de ofício pela Mesa por excesso de faltas.
Como se não bastasse tudo o já afirmado, a medida subtrai do plenário da própria Casa Legislativa a decisão da perda do mandato de membro seu, como determina o artigo 55, § 2º, da CF. Por mais que se saiba que o julgamento dos próprios companheiros por quebra de decoro parlamentar causa grande desconforto – neste artigo, os debates parlamentares revelam o quanto a missão, para eles, é “ingrata”, “difícil”, “desconfortável”, “dolorosa” –, esse é o desenho constitucional: o julgamento pelos pares.
Por coincidência, o PSOL, autor da representação para cassar o mandato do deputado Brazão, é o partido de outro parlamentar que também foi representado por quebra de decoro, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), acusado de ter expulsado e agredido fisicamente Gabriel Costenaro nas dependências da Câmara dos Deputados. Os detalhes constam da Representação 5/2024, de autoria do partido Novo.
No último dia 9 de abril, o COETICA também tinha aprovado parecer pela procedência do pedido de cassação do mandato no caso Glauber Braga, com 13 votos favoráveis e 5 contrários. Em protesto, o deputado anunciou uma greve de fome e chegou a ficar dormindo em uma das salas das comissões da Câmara por 9 dias.
A decisão de encerrar o protesto veio no dia 17 de abril, após um acordo em que o presidente da Câmara teria se comprometido a não submeter o processo do deputado ao Plenário antes de decorridos 60 dias da futura deliberação do recurso à CCJ, impugnando a decisão do COETICA.
Nesse contexto político em que os processos por quebra de decoro parlamentar funcionam como peças num tabuleiro de xadrez, é pouco provável que o PSOL vá tomar alguma medida mais concreta em relação ao desfecho do seu pedido no caso Brazão. Deputados de diferentes partidos se limitaram a criticar da tribuna a decisão da Mesa. O foco de preocupações é com o caso Glauber Braga, cuja situação é grave, só não mais do que o próprio Brazão.
Mais uma vez, convém reiterar que a crítica que se faz ao desfecho dado ao caso Brazão nada tem a ver com os fatos que subjazem à acusação de que o parlamentar estaria entre os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco. Por mais que o contexto não seja o ideal para o debate, é preciso atentar para a observância do devido processo legal na sua dimensão parlamentar. Não se defende a impunidade criminal do agora ex-deputado, mas tão somente o regime de prerrogativas do mandato.
Nesse contexto, a preocupação é a seguinte: se essa interpretação da Mesa da Câmara dos Deputados para o caso Brazão vingar, ocorrerá um esvaziamento do sistema de responsabilização do ético-político-disciplinar dos parlamentares sempre que ocorra uma prisão preventiva – em lugar de ter o mandato cassado por quebra de decoro, a tendência será perdê-lo por excesso de faltas –, com a consequência deletéria de que esse parlamentar, mesmo réu em um processo criminal, continuará elegível enquanto não houver condenação proferida por órgão judicial colegiado e não incidirá a inelegibilidade do artigo 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, com redação dada pela LC 81/1994.