No contexto das recuperações judiciais, a Lei 11.101/2005 (LRF) optou por estabelecer um tratamento diferenciado aos bens de capital essenciais à manutenção das atividades empresariais do devedor durante o stay period, prazo de 180 dias, prorrogável por igual período, uma única vez, que visa a proteção do patrimônio da empresa em crise.
Trata-se de matéria de significativa relevância, inserida na lei especial pelos artigos 6º, §§ 7º-A e 7º-B – incluídos pela Lei 14.112/2020 – e 49, § 3º, e que, atualmente, possui particularidades entendidas de formas divergentes pelos tribunais, existindo certa insegurança jurídica sobre o assunto.
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O artigo 6º, §§ 7º-A e 7-B da LRF estabelece a competência do Juízo Recuperacional para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais, enquanto o artigo 49, § 3º, da LRF veda a venda ou retirada do estabelecimento do devedor de tais ativos.
Não foi à toa que o legislador optou por realizar uma divisão entre os ativos da empresa devedora, para simplesmente classificá-los e dividi-los entre aqueles de capital ou não e, da mesma forma, essenciais ou não às atividades empresariais do devedor.
A finalidade de positivar essas qualificações aos bens da recuperanda foi permitir ao Poder Judiciário uma avaliação mais concreta relativamente à viabilidade e o impacto dos atos de constrição perante a empresa em crise, buscando equilibrar os interesses entre devedores e credores, igualmente legítimos.
A proteção dos bens de capital essenciais à atividade empresarial da devedora está totalmente alinhada com o escopo do procedimento e os seus princípios legais, considerando que o procedimento de recuperação judicial objetiva viabilizar a superação de uma crise econômico-financeira, permitindo-se a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e o interesse dos credores.
Pois bem. A própria legislação dispõe que para considerá-lo essencial às atividades empresariais da devedora, em primeiro lugar, deve ser constatado se é um bem de capital. Entretanto, na LRF, não há quaisquer definições sobre a classificação nela estabelecida, o que fez com que a jurisprudência se debruçasse em tamanha lacuna.
Foi neste contexto que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) (REsp 1.758.746/GO), concluiu pela necessidade de inferir objetivamente a abrangência do termo bem de capital. O recurso discutia uma ordem judicial de determinação de liberação de valores retidos nas contas bancárias das recuperandas, argumentando-se a instituição financeira recorrente que a decisão deveria ser reformada, já que, dentre outros fatores, os valores sequer se submetiam aos efeitos do procedimento recuperacional.
Em sede recursal, o ministro relator consignou em seu voto que o termo bem de capital abrange ativo corpóreo, seja ele móvel ou imóvel, empregado no processo produtivo da empresa, o qual deve estar obrigatoriamente na posse da recuperanda, excluindo-se dessa categoria a cessão fiduciária, por exemplo, por ser incorpórea e fungível. Ao fim do julgamento, foi restabelecida a trava bancária como requerido pelo banco recorrente.
A partir de então, restou consolidado o entendimento jurisprudencial de que o dinheiro não pode ser considerado nos parâmetros do bem de capital, decisão que, se por um lado é excessivamente prejudicial aos devedores, favorece os credores que buscam a satisfação do crédito extraconcursal.
Outra discussão já concluída pela jurisprudência foi a do reconhecimento de que produtos agrícolas não podem ser enquadrados como bens de capital essenciais, impactando especialmente os processos de recuperação judicial dos produtores agrícola[1].
Nesse julgado, a ministra relatora afirmou que os grãos cultivados e comercializados não são compatíveis com a definição do entendimento citado acima, no sentido de serem essenciais à manutenção da atividade produtiva, como é o caso, por exemplo, dos veículos de transporte, silos de armazenamento, geradores, prensas e tratores.
Os produtos agrícolas foram enquadrados como bens de consumo, que são produzidos através da utilização dos bens de capital, dispostos para auxílio na produção de bens e serviços. Este entendimento afeta principalmente as reestruturações dos produtores agrícolas.
Esclarecido que para análise da essencialidade atrai-se, primeiramente, o enquadramento do ativo na definição jurisprudencial de bem de capital, também há outra particularidade a respeito do assunto: a competência judicial.
A competência do Juízo Recuperacional se inicia quando do deferimento do processamento da recuperação judicial, momento em que se iniciam os benefícios do stay period. Isso se justifica, segundo o julgamento do STJ (CC 153.473/PR), pelo fato de que o Juízo onde tramita o processo recuperacional “tem acesso a todas as informações sobre a real situação do patrimônio da recuperanda”.
Tendo em vista que a decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial não possui efeitos retroativos (ex nunc), os atos de constrição patrimonial dos bens adjudicados antes da data do pedido recuperacional, cuja competência é atribuída exclusivamente aos Juízo das execuções individuais, são tidos como válidos e eficazes.
Com o advento da Lei 14.112/2020, estabeleceu-se que, no que diz respeito aos créditos extraconcursais, mencionados pelo artigo 49, §§ 3º e 4º, LRF, compete ao Juízo Recuperacional a ordem de suspensão dos atos de constrição sobre tais ativos durante o período de blindagem, bem como, com relação aos créditos fiscais, a determinação de substituição deles até o encerramento da recuperação judicial, em ambas as hipóteses, mediante a cooperação jurisdicional. Eis os marcos temporais que encerram a competência judicial aqui discutida.
Nesse raciocínio, após o decurso do stay period e o encerramento do procedimento recuperacional, a depender do crédito envolvido, em tese, tratando-se de bem de capital essencial, não mais caberia ao Juízo Recuperacional decidir sobre as constrições, restaurando-se as regras de competência habitual. Seria nesse período que os credores extraconcursais atingem novamente certa liberdade para cobrança das dívidas.
Além disso, o Enunciado III do Grupo Reservado de Direito Empresarial do TJSP firmou que, encerrado o stay period, “as medidas de expropriação pelo credor titular de propriedade fiduciária de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor, poderão ser retomadas, ainda que os bens a serem excutidos sejam essenciais à atividade empresarial”, reforçando o mesmo sentido já disposto no ordenamento jurídico brasileiro.
Na prática, não é esse cenário que se revela. Em recentes julgamentos, ainda que encerrado o stay period, não é raro o impedimento da retomada de bens pertencente aos credores e que estão em posse da devedora, apenas por serem considerados essenciais às atividades empresariais.[2]
Ainda, o TJSP[3] e o STJ[4] já entenderam que compete ao Juízo Recuperacional o controle dos atos de constrição relativos aos bens da empresa recuperanda, pois caberia a ele gerir as restrições sobre os ativos, mesmo que para pagamento de crédito extraconcursal e tendo encerrado o período de blindagem, evidenciando certa desarmonia com a legislação vigente.
Embora da leitura do texto legal fique claro que com o fim do stay period está dispensada a verificação da essencialidade dos bens de capital, nas decisões judiciais, apesar de o credor estar em seu legítimo direito de promover atos de constrição, há certa inclinação dos tribunais à proteção do devedor e, muitas vezes, sequer é exigida a comprovação de essencialidade dos ativos.
Na irrestrita tentativa de manutenção das atividades do devedor, os julgados se fundamentam principalmente na defesa dos princípios da preservação da empresa e de sua função social, que norteiam a lei brasileira, deixando de aplicar os próprios dispositivos da norma legal e de equilibrar os interesses entre as partes, elemento que favorece a insegurança jurídica.
Por fim, importante ressaltar que a equivocada ideia de relativizar, após o stay period, a possibilidade de promoção de atos de constrição por credores extraconcursais, além de ferir a lei, pode contribuir para um prolongamento excessivo da tentativa de reestruturação a casos em que a decretação da falência seria, até mesmo, menos onerosa do que a forçada manutenção das atividades empresariais.
[1] STJ – REsp: 1991989 MA 2021/0323123-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/05/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2022.
[2] TJSP; Agravo de Instrumento 2240258-97.2024.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Especializado da 4ª e da 10ª RAJs – 1ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados a Arbitragem; Data do Julgamento: 28/01/2025; Data de Registro: 29/01/2025.
[3] TJ-SP 2225540-32.2023.8.26.0000 São Paulo, Relator: Luís H. B. Franzé, Data de Julgamento: 20/12/2023, 17ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/12/2023.
[4] AgInt no AREsp 1.677.661/SC, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, j. 19/10/2020, DJe 23/10/2020.