A Lei 14.754/2023, sancionada com o objetivo de modernizar e aprimorar o regime de tributação sobre investimentos no exterior, aplicações financeiras e estruturas societárias internacionais controladas por pessoas físicas residentes no Brasil, representa um avanço relevante no combate à evasão fiscal e à postergação artificial da incidência do Imposto de Renda.
No entanto, como toda norma que busca um equilíbrio entre arrecadação e neutralidade econômica, seus critérios precisam ser analisados com cautela — sobretudo quando os efeitos colaterais atingem setores estratégicos da economia, como a indústria de tecnologia e inovação.
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Um dos pontos mais sensíveis da nova lei está no art. 8º, que trata da chamada tributação automática anual dos lucros das entidades controladas no exterior, ainda que tais lucros não tenham sido distribuídos. Para escapar desse regime mais gravoso, a empresa estrangeira deve ser considerada uma entidade não qualificada, o que ocorre quando pelo menos 60% de sua receita bruta decorre de “renda ativa própria”[1].
Ocorre que, segundo o §2º do mesmo artigo, a lei exclui expressamente os royalties do conceito de renda ativa própria. Em outras palavras: se uma empresa aufere receitas predominantemente por meio de royalties — mesmo que oriundos de contratos legítimos de licenciamento de software ou propriedade intelectual desenvolvidos internamente —, ela será considerada uma “controlada qualificada” e seus lucros estarão sujeitos à tributação anual automática pelo Brasil.
Renda ativa x renda passiva: um recorte ultrapassado?
No contexto da Lei 14.754/2023, renda ativa própria refere-se àquela resultante de atividades operacionais regulares da empresa, como a produção e comercialização de bens e serviços com substância econômica. Já a renda passiva inclui, entre outros, juros, dividendos, ganhos de capital, aluguéis e royalties — considerados como receitas desvinculadas de atividade produtiva.
Essa classificação parte de um modelo econômico tradicional, no qual empresas geram renda ativa a partir de bens tangíveis e renda passiva a partir da mera posse de ativos. No entanto, essa lógica não dialoga com a nova realidade da economia digital, onde ativos intangíveis — como algoritmos, software, bancos de dados, marcas e modelos de negócios digitais — são frequentemente o centro da atividade produtiva.
O caso das empresas de tecnologia
Imagine uma startup brasileira que desenvolve um sistema próprio de inteligência artificial voltado à automação de diagnósticos médicos. Para expandir sua atuação global, ela estrutura uma controlada no exterior, que ficará responsável por licenciar o software para hospitais e clínicas fora do Brasil, recebendo, como contrapartida, royalties sobre o uso da tecnologia.
Essa empresa estrangeira tem funcionários, estrutura operacional, contratos, e desenvolve atividade econômica real — mas, porque sua principal fonte de receita são os royalties, será considerada “qualificada” pela nova lei e, portanto, sujeita à tributação automática anual no Brasil.
Esse resultado viola o princípio da capacidade contributiva, uma vez que a pessoa física residente no Brasil será tributada anualmente sobre lucros que ainda não foram disponibilizados. Além disso, ignora o fato de que, nesse caso, os royalties não são meramente passivos, mas a forma principal de remuneração da atividade-fim da empresa.
A posição da OCDE e o tratamento internacional dos royalties
O artigo 12 do Modelo de Convenção da OCDE sobre a Bitributação define royalties como “pagamentos de qualquer natureza recebidos como contraprestação pelo uso, ou pela concessão do uso, de direitos autorais, patentes, marcas de fábrica ou de comércio, desenhos ou modelos, planos, fórmulas ou processos secretos”[2].
Em muitos países, a qualificação dos royalties como renda passiva ou ativa depende do contexto: quando originados de propriedade intelectual desenvolvida pela própria empresa e explorada como atividade operacional, os royalties podem ser considerados como renda ativa.
Ademais, o Pilar 1 da Reforma Tributária Global da OCDE/G20 parte do reconhecimento de que os modelos de negócios baseados em intangíveis são fontes legítimas de criação de valor econômico, exigindo um redesenho das normas tradicionais de alocação de lucros[3].
A legislação brasileira, ao ignorar essas tendências, corre o risco de penalizar empresas que operam com inovação e intangibilidade, tratando-as da mesma forma que veículos artificiais de acumulação de capital.
Impactos práticos e necessidade de revisão
O impacto da exclusão dos royalties como renda ativa pode ser profundo. Startups brasileiras com presença global, empresas de software que licenciam seus produtos no exterior, desenvolvedores de jogos digitais, marketplaces baseados em tecnologia própria — todos esses modelos podem ser desincentivados pela tributação automática anual, caso concentrem sua receita em royalties.
Isso cria uma assimetria perversa: empresas que operam com base em intangíveis acabam sendo mais oneradas do que empresas que exploram bens físicos ou prestam serviços convencionais no exterior. Além disso, há um risco de desincentivo à formalização internacional, já que estruturas transparentes e substanciais podem ser tratadas de forma mais onerosa do que aquelas que operam à margem do sistema.
Conclusão
É inegável que a Lei 14.754/2023 representa um avanço no enfrentamento da elisão fiscal por meio de estruturas offshore artificiais. No entanto, a exclusão absoluta dos royalties do conceito de renda ativa própria é um erro técnico com efeitos econômicos relevantes, sobretudo para o setor tecnológico. Essa definição estreita compromete a neutralidade econômica da norma e ignora o papel central dos ativos intangíveis na geração de valor no século 21.
Uma futura regulamentação — ou mesmo uma revisão legislativa — deveria considerar os royalties oriundos de ativos desenvolvidos pela própria empresa, utilizados no curso normal das suas operações, como parte da renda ativa própria, alinhando-se às práticas internacionais e protegendo a competitividade da indústria de inovação brasileira.
Em tempos de transformação digital acelerada, é fundamental que a legislação tributária não desestimule a inteligência brasileira de cruzar fronteiras.
[1] BRASIL. Lei nº 14.754, de 12 de dezembro de 2023, art. 8º, §§1º e 2º.
[2] OCDE. Modelo de Convenção da OCDE sobre a Renda e o Capital (2022), Art. 12.
[3] OCDE. Blueprint – Pillar One, 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/tax/beps/