Disputa comercial EUA x China: efeitos sobre a Embraer para além da Bolsa

Nos últimos dias, quem ligou a TV, leu sites de notícias ou abriu as redes sociais certamente se deparou com os desdobramentos do tarifaço entre China e Estados Unidos. A tensão ganhou nova escala no último dia 15, quando a Bloomberg noticiou que a China suspenderia as entregas de jatos da Boeing — uma decisão que atingiria diretamente o maior exportador industrial dos Estados Unidos, com impacto sensível sobre toda a cadeia aeroespacial global. O governo chinês não confirmou a informação.

Pouco depois, a mídia nacional repercutiu a notícia com destaque para a valorização das ações da Embraer e da Airbus, sugerindo que essas empresas poderiam se beneficiar diretamente da suspensão imposta à Boeing.

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Essa leitura imediata — “Boeing perde, Embraer e Airbus ganham” — parece óbvia à primeira vista. Mas a complexidade deste setor no mercado globalizado (com cadeias produtivas globais) e a especial estruturação de cada uma destas corporações instala reflexões mais profundas que merecem ser consideradas.

Airbus: uma empresa europeia, não apenas francesa

A Airbus é uma corporação europeia com sede legal nos Países Baixos, sede operacional em Toulouse, na França, e forte presença industrial na Alemanha, na Espanha, no Reino Unido e na França. Dentre seus principais acionistas estão os governos francês (10,83%), alemão (10,82%) e espanhol (4,08%).

Essa estrutura multinacional é essencial para entender seu papel geopolítico — principalmente em contextos de tensões comerciais. Considerá-la como “francesa” pode parecer um detalhe, mas isso afeta significativamente a compreensão sobre como seus vínculos comerciais e produtivos se desenvolvem, como funciona a sua governança e, por consequência, como se dão as reações e efeitos em situações como esta.

Embraer: muito mais do que uma ‘montadora’

Outro ponto que merece atenção é o alcance da operação da Embraer, por vezes considerada mera “montadora brasileira”. A Embraer não apenas monta aeronaves — ela projeta, desenvolve, certifica e industrializa seus próprios produtos. Com atuação nas áreas comercial, executiva, militar e de serviços, é referência mundial na aviação regional.

A análise dos efeitos do tarifaço do Trump no setor pressupõe, portanto, evitar simplificações que, na tentativa de facilitar a leitura, reduzem a complexidade e o papel estratégico que a empresa brasileira ocupa globalmente.

Embraer vs Boeing: categorias diferentes

Outro ponto crítico que vem sendo noticiado é a ideia de que a Embraer possa ocupar o espaço deixado pela Boeing na China.

A Boeing fornece, principalmente, a aeronave 737 MAX, com capacidade para 150 a 210 passageiros — aeronaves chamadas de narrowbody, de alcance médio. Já a Embraer atua no segmento de jatos regionais, com capacidade entre 70 e 130 lugares.

São categorias de produto distintas, para rotas, perfis de passageiros e estruturas operacionais diferentes. Tanto é que a própria Boeing já tentou adquirir a divisão comercial da Embraer anos atrás — justamente porque reconhecia a complementaridade e não a concorrência direta entre suas linhas.

Ainda assim, sob a ótica econômica, vale reconhecer que, em cenários de oferta restrita, agentes de mercado podem considerar substitutos imperfeitos para mitigar impactos. No entanto, esta substituição é limitada e envolve desafios operacionais, logísticos e regulatórios que dificilmente se resolvem em curto prazo – especialmente no setor aeroespacial.

A China vai recorrer à Embraer e à Airbus? Expectativa desconectada da realidade

Tem-se falado sobre a possibilidade de a China suprir suas necessidades internas recorrendo à Airbus e à Embraer. Esta expectativa, porém, desconsidera limitações técnicas e operacionais significativas do setor.

A Airbus já tem sua produção comprometida com entregas planejadas para anos. A Embraer não compete diretamente com o 737. Em ambos os casos, expandir a produção de aeronaves não é uma decisão simples, implementável de imediato. Pressupõe anos de planejamento, organização da cadeia produtiva, busca de certificações, contratos com fornecedores, revisão e estruturação de contratos e todo um processo complexo de engenharia.

Em síntese: o setor aeroespacial não se adapta com rapidez a choques de mercado. Ele é planejado, integrado e altamente regulado. Essa é uma das principais razões pelas quais análises sobre os efeitos de medidas como a guerra comercial entre EUA e China devem ser feitas com cautela e muita atenção a características do setor, do mercado e dos operadores especificamente envolvidos em cada medida anunciada pelos governos.

Análises econômicas sobre medidas protecionistas não podem ser feitas hoje como eram décadas atrás. Falar sobre os possíveis efeitos de uma guerra comercial desta magnitude em economias e mercados globalizados, em setores altamente regulados e técnica e operacionalmente complexos merecem especial cautela. Sobretudo porque narrativas simplificadas podem distorcer percepções públicas — a influenciar reações e/ou medidas igualmente simplificadas.

Narrativas do tipo “o problema de um é a oportunidade do outro” neste cenário são perigosas. A realidade é mais complexa — e, muitas vezes, a lógica binária dos ganhos e perdas pode ser tão óbvia quanto equivocada.

A decisão da China em suspender compras da Boeing é, sem dúvida, relevante. Mas o setor aeroespacial não responde como outros mercados. Ele é lento, regulado, de alta complexidade técnica e opera sob gargalos severos. Não se trata de simplesmente “passar a demanda adiante”.

É por isso que uma leitura crítica, cautelosa e técnica sobre medidas de intervenção estatal é necessária, especialmente quando as manchetes vêm carregadas de interpretações simplificadas.

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