O controle de constitucionalidade é função primordial do poder judiciário nos sistemas jurídicos, especialmente no contexto dos Estados Unidos. Por meio da judicial review (revisão judicial)- os tribunais detêm a competência de examinar a conformidade das normas infraconstitucionais aos preceitos constitucionais. Essa prerrogativa permite ao judiciário exercer o papel de intérprete final da Constituição, assegurando a proteção dos preceitos constitucionais, em especial os direitos fundamentais, e limitando, assim, as ações dos Poderes Legislativo e Executivo que possam infringir os parâmetros estabelecidos na Carta Magna.
Nos Estados Unidos, o conceito de judicial review foi estabelecido pelo caso Marbury v. Madison (1803), onde a Suprema Corte afirmou que tinha o poder de anular leis que contrariassem a Constituição. Desde então, essa competência tem sido um dos pilares do sistema jurídico norte-americano. Os tribunais aplicam diferentes padrões de revisão, como o strict scrutiny (escrutínio rígido) e o rational basis review ( Revisão da base racional), para julgar a constitucionalidade de normas que afetam direitos fundamentais.
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Um exemplo recente do exercício desse controle é o caso Free Speech Coalition, Inc. v. Paxton (2022), que envolve a análise de uma lei do Texas (H.B. 1181) que exige a verificação de idade para acessar sites de conteúdo adulto a fim de prevenir o acesso de crianças e adolescentes. O caso levantou questões cruciais sobre a liberdade de expressão e o direito à divulgação e de acesso à conteúdos lícitos , princípios fundamentais protegidos pela 1ª Emenda da Constituição dos EUA, e a necessidade de ponderá-los com o interesse de proteger crianças de conteúdos prejudiciais.
Para a análise da constitucionalidade, os tribunais dos Estados Unidos adotam distintos padrões de revisão, com destaque para o strict scrutiny e o rational basis review, cuja aplicação depende da natureza do direito envolvido e da intensidade da ingerência estatal. O strict scrutiny é o padrão de revisão mais rigoroso, utilizado quando há uma potencial violação de direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão, o direito à igualdade e outros direitos reconhecidos como essenciais para a dignidade humana e a autonomia individual. Para que uma lei ultrapasse o strict scrutiny, o Estado deve demonstrar que a medida em questão é necessária para alcançar um interesse governamental imperioso e que não existe meio menos restritivo disponível para atingir o mesmo fim. Esse teste é tipicamente aplicado em casos que envolvem discriminação racial, orientação sexual ou a limitação de liberdades fundamentais.
Por sua vez, o rational basis review é padrão mais flexível e menos austero, utilizado quando a lei não afeta direitos fundamentais ou quando a alegação de discriminação recai sobre categorias que não violam direitos fundamentais. Sob esse padrão, uma lei será considerada constitucional se o governo demonstrar que ela é racionalmente relacionada a um interesse legítimo. A avaliação do rational basis oferece uma ampla margem de discricionariedade ao legislador, sendo frequentemente aplicado em matérias econômicas, sociais e administrativas, onde o Estado tem maior liberdade e competência para legislar. Exemplos típicos incluem a regulação de mercados, a política fiscal e outras questões que envolvem o exercício do poder público em áreas menos sensíveis aos direitos individuais.
No caso Free Speech Coalition, Inc. v. Paxton (2022), foi ajuizada ação perante a 1ª instância da Justiça Federal para suspender a lei argumentando que ela viola a liberdade de expressão de adultos ao exigir a identificação dos usuários para o acesso a sites de conteúdo protegido pela 1ª emenda, restringindo e dificultando o acesso também ao público adulto. A FSC ( Free speech Coalition) também alega que há muitas outras formas menos invasivas de proteção ao direito de privacidade, que evitariam o acesso de crianças a esse tipo de conteúdo, como filtros e, também, que essa tarefa cabe aos pais e às famílias das crianças e não ao governo.
Entre alguns dos amici curiae propostos em favor da FSC, destaco a fundamentação apresentada pelo professor de Direito da Universidade da Califórnia Berkley, que atuou pela American Booksellers for Free Expression, Authors Guild, Inc. Association of American Publishers, Inc., Comic Book Legal Defense Fund, and Freedom to Read Foundation, associação que defende a liberdade de expressão e divulgação de escritores e publicadores de textos:
”O precedente consolidado deste Tribunal é claro: restrições baseadas no conteúdo sobre materiais protegidos pela Primeira Emenda estão sujeitas a um exame rigoroso. Em particular, uma lei que ‘efetivamente suprime uma grande quantidade de discurso que os adultos têm o direito constitucional de receber e de comunicar uns aos outros [como a Lei HB 1181 do Texas faria] é inaceitável se alternativas menos restritivas fossem, ao menos, tão eficazes em atingir os fins legítimos para os quais a lei foi criada.”
[…]
“De acordo com os precedentes deste Tribunal, o teste adequado para avaliar a constitucionalidade das leis baseadas em conteúdo que restringem a liberdade de expressão protegida de adultos e menores mais velhos sob a justificativa de proteger menores é o strict scrunity, e não o rational basis review . Veja, por exemplo, Ashcroft, 542 U.S. a 666.” (TRADUZIDO DO ORIGINAL)
O Juiz Federal de 1ª instância concedeu a preliminary injuction (assemelhada à tutela de urgência) em favor da FSC suspendendo a lei porque entendeu que ela era desproporcional e que violava a 1ª emenda. O Procurador-geral do Texas (Ken Paxton) interpôs apelação para a corte federal do 5º circuito requerendo a suspensão da decisão do Juiz Federal, alegando que a decisão de primeira instância no caso Free Speech Coalition, Inc. v. que lei de verificação de idade (H.B. 1181) era constitucional e que deveria ser implementada para proteger as crianças contra o acesso a conteúdos prejudiciais, como pornografia. Paxton argumentou que a lei não viola a Primeira Emenda, pois não impõe censura generalizada ao conteúdo adulto legalmente produzido, mas sim uma regulação de acesso a esse conteúdo com o objetivo de evitar que crianças e adolescentes o acessem.
No julgamento do caso, a Corte de Apelações do 5º circuito dos Estados Unidos optou por aplicar o rational basis review em vez do strict scrutiny, considerando a natureza da regulação e os interesses em jogo. A corte entendeu que a lei de verificação de idade do Texas (H.B. 1181) não envolvia a restrição de um direito fundamental protegido pela Constituição, como a liberdade de expressão. Embora a lei afetasse o acesso de adultos a conteúdo pornográfico, a corte argumentou que a regulação não constituía uma proibição direta de acesso a esse conteúdo, resultando numa medida voltada para impedir o acesso de pessoas não-adultas à pornografia, o que justificava a aplicação do instrumento jurídico mais permissivo – o rational basis review.
Outro ponto relevante para a escolha do rational basis review foi o entendimento de que o Estado do Texas tinha interesse legítimo em proteger a saúde pública, especialmente no que diz respeito à proteção das crianças contra materiais potencialmente prejudiciais. A corte reconheceu que o interesse do Estado era suficientemente importante para ser analisado sob um padrão mais brando, como o rational basis, sem a necessidade de atender aos critérios mais rigorosos do strict scrutiny. Considerou que, embora a Primeira Emenda proteja a liberdade de expressão, o acesso de crianças e adolescente a conteúdos pornográficos não está abrangido por essa proteção, o que permite uma regulação direcionada de acesso a esse tipo específico de conteúdo, sem configurar uma restrição geral à liberdade de expressão. O estado de Ohio entrou com amici curiae onde defende que os Estados podem constitucionalmente promulgar regras para menores que seriam inconstitucionais para adultos, veja :
“Está bem estabelecido que os Estados podem promulgar “legislação destinada a proteger o bem-estar físico e emocional dos jovens, mesmo quando as leis operam em áreas sensíveis de direitos constitucionalmente protegidos.” Ferber 458 U.S a 756. Esse poder inclui leis que limitam o acesso de menores a espaços e conteúdos destinados a adultos.”
[…]
“Quando se trata de pornografia na internet, os Estados têm um interesse legítimo em camadas na proteção das crianças contra a obscenidade.” (TRADUZIDO DO ORIGINAL)
Além disso, a Corte, destacando que a verificação de idade proposta pela lei não limita a liberdade de expressão de adultos, mas visa apenas restringir o acesso de menores de idade a conteúdos que venham a prejudicar seu desenvolvimento mental. A Corte decidiu que a regulação constitui medida que não afetava diretamente o conteúdo protegido pela Primeira Emenda. A aplicação do rational basis review, portanto, se deu pela necessidade de avaliar a constitucionalidade de uma regulação que não envolvia a restrição direta de direitos fundamentais, mas sim uma medida que visava um interesse legítimo do Estado.
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Não se conformando com a decisão da Corte de Apelações, a Free Speech Coalition (FSC) recorreu à Suprema Corte para que o caso fosse analisado sob diversa perspectiva, buscando uma revisão da aplicação do rational basis review. Importante ressaltar que a questão levada à Suprema Corte não versa sobre a constitucionalidade da lei, mas sim o level of scrutiny a ser aplicado ao caso.
Em conclusão, o caso Free Speech Coalition v. Paxton evidencia a aplicação do strict scrutiny vs rational basis reviw no controle de constitucionalidade e seus parâmetros. Ainda sem data de julgamento, cabe agora a Suprema Corte dos Estados Unidos julgar se a aplicação do rational basis review pela Corte de Apelações do 5º circuito foi correta ou não.