O problema do concurso de crimes na denúncia contra Bolsonaro (e outros)

Poucos temas são mais complexos e trazem mais impactos práticos do que o do concurso de crimes. Não por acaso, da leitura da denúncia relativa ao “núcleo” do ex-presidente Jair Bolsonaro, apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e recebida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é possível antever necessária discussão sobre a possibilidade de “acumulação” dos crimes imputados e suas respectivas penas.

Afinal, há de se questionar se os fatos poderiam ser enquadrados nos seguintes tipos penais: “crimes de organização criminosa armada (art. 2º, caput, §§2º e 4º, II, da Lei 12.850/2013), tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP), golpe de Estado (art. 359-M do CP), dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima (art. 163, parágrafo único, I, III e IV, do CP), e deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da Lei 9.605/1998)”, em concurso material (art. 69, caput, do CP). Haveria aqui, em alguma medida, excesso?

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Irei iniciar com o que me parece essencial: a relação entre o crime de (i) tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L, CP) e o de (ii) tentativa de golpe de Estado (art. 359-M, CP). Poderia alguém ser punido, quanto aos mesmos fatos, por ambos os delitos, seja em concurso formal (próprio ou impróprio) seja em concurso material?

Ou somente a pena de um dos crimes deveria ser aplicada, por haver relação de especialidade, subsidiariedade, consunção ou alternatividade? Já se sabe que a hipótese acusatória é a de concurso material (art. 69, caput, do CP), a qual recebeu acolhida no STF até o momento.

Contudo, desde as condenações pelo 8 de janeiro iniciadas em 2023, desconfio desta conclusão[1]. Parece-me plausível se tratar de conflito aparente de leis penais. A fim de avançar nessa hipótese, farei um breve exame do tipo objetivo de cada um dos crimes em questão.

Há três características a priori compartilhadas por ambos: (i) a criminalização diretamente na modalidade tentada; (ii) a exigência de recurso à violência ou à grave ameaça e (iii) a tutela das “instituições democráticas”. O problema da tentativa exige um debate relevante sobre o início da execução, que é, contudo, externo ao objeto deste artigo. Já a questão do recurso à violência ou à grave ameaça merece algumas linhas, assim também a do bem jurídico tutelado.

Começando por aquele ponto, vê-se que o legislador não utilizou idêntica expressão no art. 369-L e 359-M do CP, pois no crime de tentativa de golpe de Estado a elementar é “por meio de violência e grave ameaça”, já no de tentativa de abolição violenta a elementar é “com emprego de violência e grave ameaça”. A redação diferente (por meio versus com emprego) permite questionar se há equivalência de sentido.

Uma possibilidade de distinção seria a seguinte: no art. 359-L do CP, a violência ou a grave ameaça poderia ocorrer antes ou após a restrição ou o impedimento do exercício de poderes constitucionais, havendo certa autonomia entre tais elementares (a violência/grave ameaça não necessariamente precisaria dar causa à restrição ou ao impedimento). Tal interpretação não me parece viável no crime do art. 359-M do CP, em razão da expressão “por meio de”.

Além disso, é essencial aclarar o objeto da violência: se apenas pessoas ou se também “coisas” (res) – ainda que com repercussão indireta sobre pessoas[2]. Isso porque os tipos penais dos arts. 359-L e 359-M do CP falam expressamente que suas penas devem ser cumuladas com “a pena correspondente à violência”.

Logo, esclarecer sobre o que incide, afinal, a violência permitirá concluir se há dever de cumulação destes com as penas de delitos como o de homicídio e o de lesão corporal (se violência à pessoa) ou, por exemplo, com as de dano e suas variantes (se violência a coisas)[3].

Haveria, ainda, uma terceira possibilidade de interpretação da violência que seria de ordem simbólica – uma violência que se manterializa enquanto ataque discursivo a noções que constituem e sustentam um Estado Democrático de Direito. Esta compreensão traria desafios adicionais dos quais aqui não tratarei.

Apontadas algumas convergências entre os tipos, há de se investigar as demais elementares. Observo que no crime de tentativa de golpe de estado, o verbo “depor” tem por objeto o “governo constituído”, já no crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, o verbo “abolir” tem por objeto o “Estado Democrático de Direito” (doravante EDD), ou seja, um conceito bastante abstrato. Contudo, neste último tipo penal parece haver um modo vinculado como essa tentativa de abolir o EDD há de se concretizar, para além do emprego da violência ou da grave ameaça em algum momento da execução, a saber: “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (art. 359-L, CP).

Se essa percepção é correta, então (i) não bastaria o emprego de violência ou de grave ameaça na tentativa de abolição do EDD, sendo indispensável um efetivo e concreto impedimento ou restrição do exercício de algum dos poderes constitucionais (a priori os poderes conferidos pela Constituição ao Legislativo, Executivo e Judiciário) e (ii) pela redação típica, parece plausível considerar que esse impedimento ou restrição não poderia ser meramente intencionado, mas concretamente gerado.

Já no crime de tentativa de golpe de Estado, além de não haver uma especificação quanto ao modo pelo qual se pretende a “deposição” (bastando a intenção de tomada do poder com recurso à violência ou grave ameaça), o objeto da conduta é mais restrito – “governo constituído”. Logo, é plausível considerar que este tipo penal está circunscrito ao Poder Executivo.

Assim, retoma-se o ponto de origem: as penas de tais tipos penais podem ser aplicadas cumulativamente ao mesmo fato? Tenho a impressão de que não. Vejo ao menos três hipóteses que indicam uma relação abstrata de sobreposição total ou parcial entre os tipos, que levariam não a um concurso material, mas a um conflito aparente, de modo a inviabilizar a acumulação de penas.

A primeira possibilidade é considerar que o crime de abolição violenta do EDD (art. 359-L, CP) seria especial em relação ao golpe de Estado, em razão da elementar “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, que significaria um modo vinculado para tentar abolir o EDD, para além do emprego de violência ou grave ameaça.

No caso do golpe de Estado (art. 359-M), bastaria que a violência ou grave ameaça fosse o meio utilizado na tentativa de deposição do governo constituído, sem que se exigisse, pela redação típica, uma efetiva restrição ou impedimento do exercício deste poder constitucional para a consumação do crime.

A segunda possibilidade é considerar que o crime de golpe de Estado (art. 359-M, CP) seria especial em relação ao de abolição violenta do EDD (art. 359-L, CP), por, prima facie, dizer respeito exclusivamente ao Poder Executivo, não aos demais poderes. Ademais, poder-se-ia considerar que, no crime de golpe de Estado, busca-se não apenas restringir/minguar o exercício de poderes por aqueles que os ostentam, mas tomar o poder integralmente pela violência ou pela grave ameaça.

Haveria, pois, uma forma especial e uma geral de ataque ao mesmo bem jurídico (instituições democráticas), com equivalência na pena mínima, mas disparidade na pena máxima (sendo a do art. 359-M do CP maior). A indicar que o legislador possivelmente considerou que os atos executórios da tentativa de golpe de Estado teriam potencial de, a depender da dinâmica dos fatos, agredir mais o bem jurídico tutelado do que os da tentativa de abolição do EDD.

A terceira possibilidade, menos usual, é visualizar uma alternatividade entre os tipos penais em questão, admitindo que cada um teria elementos especiais que se ligariam por um espectro comum[4]. Nesse sentido, nenhum conteria totalmente o outro, havendo uma sobreposição parcial[5].

O crime de tentativa de golpe de Estado (art. 359-M, CP) teria um especial objeto da conduta: o governo constituído, mais restrito do que a noção de Estado Democrático de Direito (art. 359-L, CP). Ao mesmo tempo, o crime de abolição violenta (art. 359-L, CP) demandaria uma concreta restrição ou impedimento do exercício de algum dos poderes constitucionais para se consumar, exigência ausente, ao menos explicitamente, no crime de tentativa de golpe de Estado.

Ainda na lógica da alternatividade, uma tentativa de golpe de Estado poderia ou não gerar concretamente uma restrição ou impedimento do exercício de algum dos poderes constitucionais[6]. Caso houvesse essa restrição e/ou impedimento, a conduta encaixaria em ambos os delitos, de tal modo que a decisão sobre o prevalecente haveria de se dar pelo apenamento – a preferência lógica é pelo crime de maior pena, nesta hipótese, pelo do art. 359-M do CP (consideradas aqui as penas máximas).

Há ainda uma quarta hipótese de conflito aparente que negaria a ideia de relação abstrata entre os tipos penais dos arts. 359-L e 359-M do CP (seja de sobreposição total ou parcial), reconhecendo uma vinculação apenas fenomenológica (concreta) e, portanto, dependente da facticidade. Trata-se da noção de consunção, na qual o crime do art. 359-M do CP absorveria o crime do art. 359-L do CP, sempre que a tentativa de abolição se revelasse, no caso em julgamento, etapa da tentativa de golpe de Estado. Em outras palavras, tais delitos poderiam ocorrer isoladamente, sem que houvesse relação entre eles, ou de modo a um “acompanhar” o outro.

Confesso que nenhuma das quatro possibilidades elencadas – especialidade do art. 359-L do CP, especialidade do art. 359-M do CP, alternatividade, com preferência pelo de maior apenamento – art. 359-M do CP – ou consunção, com prevalência do art. 359-M do CP – é isenta de críticas. De modo intuitivo, tendo a considerar mais promissoras a segunda e a quarta hipótese. Explicarei brevemente o porquê.

Quanto à primeira hipótese (especialidade do art. 359-L, CP), parece difícil sustentar a prevalência (especialidade) do crime cujo objeto da conduta é mais amplo (a saber, EDD), bem como que abarcaria condutas contra todos os poderes constitucionais, não apenas contra o Executivo.

Quanto à terceira hipótese (alternatividade, com prevalência do art. 359-M, CP), tal noção pressupõe que os tipos em questão sejam verdadeiramente equitativos (sem prevalência) por representem, em verdade, o mesmo injusto, o que me parece questionável. Ademais, esse critério é subsidiário – o último a ser examinado no conflito aparente –, sendo que critérios antecedentes respondem de modo mais adequado ao problema posto.

A segunda hipótese (especialidade do art. 359-M, CP) seria a priori consistente, desde que se entendesse que toda tentativa de golpe de Estado traz consigo logicamente uma pretensão de abolir o EDD, bem como algum grau concreto de restrição e ou impedimento do exercício de poderes constitucionais – o que é discutível, mas bastante plausível. Caso se entenda que nem toda tentativa de golpe de Estado contém uma tentativa de abolição, afastando-se o critério de especialidade, então a quarta hipótese (consunção) será a resposta mais adequada.

Nesse sentido, assume-se que não há relação abstrata entre os tipos, sendo esta uma variável dependente da dinâmica dos fatos. Ao mesmo tempo, admite-se que há uma probabilidade relevante de o crime do art. 359-L, CP, em casos concretos, anteceder, acompanhar ou mesmo suceder o crime de tentativa de golpe de Estado, sendo por este absorvido[7].

Assim pontuado, alerto: os argumentos aqui compartilhados foram escritos “à lápis”, a exigir maior maturação. De todo modo, já os submeto a escrutínio público, pela enorme relevância do debate. Há ainda outros pontos a garimpar, considerando a cumulação de tipos penais proposta pela denúncia – como a possibilidade de concurso material entre o crime de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, I, III e IV, do CP) e o de deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da Lei 9.605/1998). Estes demais temas, contudo, ficarão para um próximo texto.


[1] Veja-se, nesse sentido, artigo escrito para a Folha de São Paulo, em coautoria com Renato Vieira e Vinícius Assumpção (“Sobreposição de crimes provocou excesso punitivo” – https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/09/as-penas-para-os-reus-dos-ataques-de-8-de-janeiro-foram-adequadas-nao.shtml).

[2] Conforme Heleno Fragoso, “a violência à coisa chama-se real. (…) Há casos em que a lei se refere, explícita ou implicitamente, à violência à pessoa (…). Em outros casos, a lei não distingue (art. 150, § 1º, 203 etc.)” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Especial. 4ª. ed. José Bushatsky, 1974, p. 27).

[3] O Supremo Tribunal Federal, ao aplicar tais tipos penais, parece considerar que a violência pode ser tanto a pessoas quanto a coisas (ver por exemplo STF, AP 1.060, Tribunal Pleno, julg. 14/09/2023).

[4] Sobre o critério da alternatividade no concurso de leis penais, conferir HORTA, Frederico. Elementos fundamentais da doutrina do concurso de leis penais e suas repercussões no Direito Penal Brasileiro Contemporâneo. In: Eugênio Pacelli; Nefi Cordeiro; Sebastião dos Reis Júnior. (Org.). Direito penal e processual penal contemporâneos. 2019, p. 70 ss.

[5] É o caso, por exemplo, dos crimes de associação para o tráfico (art. 35 da Lei n. 11.343/06) e de organização criminosa (art. 2 o da lei 12.850/12), entre os quais haveria alternatividade – cf. HORTA, Frederico. Elementos fundamentais da doutrina do concurso de leis penais e suas repercussões no Direito Penal Brasileiro Contemporâneo, op. cit., p. 70.

[6] Caso se entenda que uma tentativa de golpe de Estado sempre trará consigo a restrição do exercício de poderes constitucionais, então a conclusão seria no sentido da especialidade do art. 359-M do CP (golpe de Estado) em relação ao do art. 359-L do CP.

[7] Caso se entenda que o crime do art. 359-M do CP irá sempre anteceder o crime do art. 359-L do CP, sendo uma etapa necessária deste, em uma lógica de progressão de ataque ao bem jurídico tutelado, então a hipótese seria de subsidiariedade, a qual optei por não examinar, em razão de considerá-la a hipótese com menos capacidade de rendimento para os tipos examinados.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.