Gaetani: ‘Existe desinformação ao relacionar fundações de Direito Privado a um processo de privatização’

Sob a coordenação da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), um grupo de 14 especialistas, do governo e da sociedade, se dedicou, nos últimos 12 meses, a uma tarefa intrincada: discutir mudanças legais para dar mais dinamismo aos órgãos da Administração Federal.

A ambição é criar uma proposta legislativa que resulte em uma nova Lei de Gestão Pública, capaz de substituir o Decreto-Lei 200, editado em 1967 e que vigora até hoje. São quatro eixos: Estrutura Organizacional; Governança, Planejamento e Orçamento; Parcerias em Políticas Públicas e Inovação e Controle. Em um debate que ainda não terminou.

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Nada simples, reconhece, em entrevista exclusiva ao JOTA, o secretário Extraordinário de Transformação do Estado do MGI, Francisco Gaetani, cuja atuação é focada na Estrutura Organizacional. “A ideia não é chutar caixa de marimbondo ou acordar cachorro adormecido”, adverte, sinalizando a importância do consenso.

Ainda assim, conversas difíceis, como o estímulo às fundações estatais de Direito Privado e o diálogo com o regime celetista em casos específicos, ganharam protagonismo no grupo.

Nesta entrevista, Gaetani esboçou alguns dos principais desafios da Administração e apontou alternativas para enfrentá-los. O secretário reconhece, porém, que a maturação do trabalho pode se prolongar e merecerá cuidadosa análise antes de ser levada ao Congresso. A seguir, os principais tópicos da entrevista.

Desafios que exigem a reorganização da máquina

“No Rio de Janeiro, você têm uma série de hospitais que pertencem à estrutura do Ministério da Saúde. É muito difícil funcionar assim. Um hospital que funciona como uma Secretaria, um departamento de um ministério…

Tem a Ebserh, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (vinculada ao MEC). E praticamente todas as universidades trabalham com fundações de apoio… Então, você tem uma cacofonia organizacional muito grande, que traz problemas.

A Constituição de 1988, ao unificar regimes de trabalho, ao adotar a mesma legislação de compras dos ministérios, fez a Administração Indireta perder muito de sua diferenciação.

E isso acontece também com a organização de pessoal. Em áreas como Ciência e Tecnologia, ou Meio Ambiente, a mesma carreira de funcionários trabalha no ministério, numa autarquia ou numa fundação. Caso, por exemplo, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) ou do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Isso gera uma situação, do ponto de vista gerencial, muito confusa, que se acumula ao longo do tempo.

Têm legislações de órgãos específicos que estão sendo criadas nesse meio tempo. Por exemplo, a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) são dois serviços sociais autônomos. Por que serviço social autônomo?

O caso de contratos de gestão: temos agências reguladoras que estão submetidas a contrato de gestão. Mas agência reguladora com contrato de gestão não é uma coisa pacífica, não é? Você tem uma figura jurídica difícil de explicar para um gringo…

Estatais dependentes. Bom, se uma empresa estatal é 100% dependente por que é uma empresa? Não seria o caso de ela ser um outro tipo de organização? Nas próximas semanas, vamos detalhar essas questões, primeiro com a AGU e o MGI, e depois veremos como essa discussão avança no governo.”

“A entrega dos serviços públicos como resultado de políticas públicas ficou mais truncada, mais difícil. Ao lançar mão de organizações paralelas, em alguns casos, se recorre a Organizações Sociais, e fica uma situação muito pouco transparente para a sociedade.”

Organizações Sociais, ajuste fiscal e “lavajatismo”

“Nos anos de ajuste fiscal, de lavajatismo, essa situação se agravou com dois outros problemas. Várias iniciativas foram orientadas a não gastar e a conter o risco de corrupção. Foi criada uma série de mecanismos que inibe fortemente a entrega dos serviços públicos.

A entrega dos serviços públicos como resultado de políticas públicas ficou mais truncada, mais difícil. Ao lançar mão de organizações paralelas, em alguns casos, se recorre a Organizações Sociais, e fica uma situação muito pouco transparente para a sociedade.

Os estados e municípios, em geral, mais inovadores, mais corajosos para resolver os problemas de qualquer maneira, tiveram que adotar uma série de mecanismos que a lei não proibia, mas foram enfrentar esses problemas de uma forma mais desinibida.

Nos estados e municípios, na área de saúde, as Organizações Sociais, que não estão na estrutura do Estado e sim na sociedade civil, explodiram para o bem e por mal. Algumas funcionam muito bem, outras funcionam de uma forma muito descontrolada. E hoje, o Ministério Público tem uma preocupação muito grande com esse modelo organizacional.”

“Temos que colocar a bola no chão, tentar conversar do ponto de vista da entrega do serviço público, da entrega das funções reguladoras, do respeito da prudência fiscal, como a gente trata esses temas de um jeito racional.”

O enfrentamento dos desafios, e o papel das fundações estatais

“Cada organização desse tipo toma um tipo de solução. Só que as soluções vão ficando tão específicas, tão idiossincráticas, que elas acabam virando uma situação muito heterodoxa. Em 2007, nós tivemos uma proposta de criação de fundações estatais de Direito Privado. Essa proposta, na época, foi pensada nos hospitais universitários. Não prosperou.

A solução encontrada foi a criação da empresa de prestação de serviços hospitalares, a Ebserh. Em vez de criar as fundações de Direito Privado caso a caso, você criou uma estatal nacional para trabalhar com todos os hospitais universitários do Brasil.

Mas vamos pegar o caso da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp). A Funpresp é uma fundação estatal de Direito Privado. Foi criada para a implementação da reforma do Previdência, para gerenciar as contribuições previdenciárias dos funcionários públicos.

Outro ponto: como vimos recentemente na Justiça, todo mundo quer colocar o seu gasto como excepcionalizado do ponto de vista do Orçamento. Então, o que é o Orçamento fiscal?

O Ibama arrecada em multas mais que o seu orçamento. E o Ibama volta e meia está numa situação de perda orçamentária. Tem alguma coisa errada nisso. Se essa arrecadação é do próprio Ibama, ele deveria ser capaz de investir uma boa parcela de recursos em si próprio para operacionalizar suas ações de licenciamento e fiscalização.

Temos soluções muito particulares para contextos setoriais específicos. Têm uma série de situações, que se repetem nas agências reguladoras, nas universidades, nos hospitais… A gente acredita que precisa criar algumas possibilidades mais estruturadas, mais sistêmicas, para que as organizações também procurem funcionar com um pouco mais de conforto.

Temos que colocar a bola no chão, tentar conversar do ponto de vista da entrega do serviço público, da entrega das funções reguladoras, do respeito da prudência fiscal, como a gente trata esses temas de um jeito racional.”

Fundações estatais de Direito Privado na Educação, na Saúde e nas demais atividades de ponta

“Nós estamos com essa hipótese. Na educação, os governos estaduais estão usando cada vez mais temporários. É bom para quem? É mais barato. Mas a educação que está prestando é melhor? É de boa qualidade? Isso não é uma precarização?

Na área de saúde, nós estamos vivendo essa explosão em torno dos planos de saúde, e está se criando junto à sociedade uma percepção de estar desassistido.

Segurança pública sempre foi competência dos estados. Estamos vivendo hoje a discussão da proliferação de criação de guardas municipais. Mas você vai contratar temporários? Como será isso?

Na área de tecnologia, você não consegue segurar o pessoal no governo pagando o salário que paga, até porque a rotatividade deles é muito alta. O mercado de tecnologia paga muito mais. Nós precisamos conversar sobre esses puxadinhos. Daqui a pouco, estaremos fazendo umas lambanças complicadíssimas e que não são de fácil equacionamento.

Mas eu gostaria de lembrar que, em 2007, quando o governo encaminhou o projeto para a discussão no Congresso, depois retirou, tínhamos 10 áreas de atuação.

O governo é um animal heterogêneo, cheio de ideias específicas. Por essas áreas terem suas especificidades, elas precisam de arranjos organizacionais que tenham flexibilidade, que tenham agilidade. Então nós estamos considerando essas hipóteses, mas ainda não fechamos os textos, que é o que a gente espera fazer em breve.”

“Existe muita desinformação ao relacionar as fundações de Direito Privado a um processo de privatização. Não é verdade. Essa questão trabalhista, às vezes, obscurece o debate sobre o porquê das fundações de Direito Privado. Têm áreas, como a de pesquisa, de ciência e tecnologia, de muita rotatividade de pesquisadores. São áreas de conhecimento altamente especializado que precisam de flexibilidade.”

Resistência às fundações estatais de Direito Privado

“Primeiro, importante dizer que elas já existem. Nós temos, por exemplo, as fundações de amparo à pesquisa dos estados. São fundações de Direito Privado. No governo federal, você tem, como mencionei, a Funpresp, que é uma fundação de Direito Privado.

Primeiro, existe muita desinformação ao relacionar as fundações de Direito Privado a um processo de privatização. Não é verdade.

Essa questão trabalhista, às vezes, obscurece o debate sobre o porquê das fundações de Direito Privado. Têm áreas, como a de pesquisa, de ciência e tecnologia, de muita rotatividade de pesquisadores. São áreas de conhecimento altamente especializado que precisam de flexibilidade.

Se você perguntar hoje a muitos quadros do governo, eles prefeririam eventualmente estar numa empresa estatal, no regime celetista. O regime de compras de uma fundação estatal é um regime mais flexível, mais ágil, do que o da Administração Direta.

As instituições que geram receitas próprias, uma fundação estatal de Direito Privado, que vai gerar pesquisa, prestar serviço no mercado, ao governo, que vai interagir internacionalmente, ela vai ter uma flexibilidade para gerar recursos também.

Eu vejo como um recurso a mais do governo para funcionar, e não como um problema. Obviamente, ela tem que estar sujeita às regras de controle, de transparência, de governança, eventualmente, a alguns contratos de gestão, a mecanismo de supervisão, mas eu acho que é uma coisa boa.

Nós estamos falando do futuro, nós não estamos falando do passado. Então, isso não vai afetar o direito de ninguém, não vai prejudicar os direitos de ninguém. Não é uma coisa para cortar custos, não é uma coisa para enxugar a administração. É para criar mais grau de liberdade.”

A polêmica do celetista no serviço público

“Ninguém discute a questão, por exemplo, do poder de polícia. Agora, a decisão do STF, do ano passado, que validou a Reforma Administrativa de 1998, permitiria, por exemplo, instituir um regime temporário, celetista, em áreas de função de polícia. Isso é bom para o país?

Não me parece uma coisa desejável. Estamos utilizando o tempo prolongado para a publicação do acórdão do STF para clarear a atitude do governo em relação ao futuro. Isso não alcança o passado.

Algumas discussões nós achamos que não nos interessa fazer, pois são muito negativas. Exemplo: carreiras típicas de Estado. Nós não queremos fazer essa discussão. Por quê? Porque têm países no mundo que até fiscal do Imposto de Renda é para ser privatizado. A dualidade dos regimes, em vários países europeus, permanece.

E precisamos dar dois passinhos atrás: não podemos esquecer que somos um país onde o clientelismo, o patrimonialismo e o nepotismo estão ainda fortes e dominantes, em vários Poderes, em várias áreas.

Se você retira a proteção mais dura que o regime estatutário proporciona, você abre caminho também para o retorno do clientelismo deslavado. Nós estamos vendo isso aí todo dia, e nos estados e municípios, esse fenômeno é muito mais comum.

A Constituinte definiu um Regime Jurídico Único, que não precisava ser estatutário. Em alguns municípios, todo mundo é celetista. Então, uma flexibilização descontrolada também não parece uma boa solução.

Vamos supor que nós temos uma página em branco. Vamos desenhar como é que vai ser o Estado do futuro. O que é desejável? Temos autarquias com o poder de polícia. Vamos permitir regimes de contratação temporária? Sim, não? Para quais funções, para quais atividades?

A gente precisa definir regras gerais que definam um pouco o que é do interesse do Estado, quais são as áreas, quais são as funções. Nas áreas administrativas, ninguém está discutindo se deveriam ser estatutários. Isso é uma coisa que a sociedade foi mudando e admitindo a possibilidade de terceirizar essas áreas.

Então, o que é estatutário, o que é o celetista, o que é o terceirizado, o que é o temporário? Essas questões nós estamos discutindo.”

O instrumento para substituir o Decreto-Lei 200/67

“Alguns entendem que o Decreto-Lei 200 tem quase o status de uma PEC. Outros acham que não, deveria ser uma lei complementar. Outros acham que não, pode ser projeto de lei.

O quórum para PEC é um, o quórum para lei complementar é outro, o quórum para PL é outro. Então, nós ainda não chegamos aí. E certamente isso vai influenciar. Quando você vai subindo o status da legislação, você precisa de um quórum mais qualificado. Nós não sabemos também se o governo vai entender que esse é o momento adequado de encaminhar essa discussão com o Congresso.”

Proposta para estados, municípios e demais Poderes

“Estamos trabalhando com a discussão das duas perguntas: vamos tratar de estados e municípios? E os Três Poderes? É algo a ser discutido agora, que também entra na questão de ser PEC, Lei Complementar ou projeto de lei ordinária.”

“Não é uma conversa de partido A, partido B, é uma conversa de país. É uma conversa que envolve o mundo do Direito, que envolve a área econômica, e que envolve os ministérios finalísticos. É uma conversa que envolve a União, estados e municípios. E é uma conversa que envolve os Três Poderes. Não é uma conversa do governo. É uma conversa do país melhorado.”

Discussão no governo e negociação no Congresso

“É um esforço. Estamos trabalhando para discutir no Ministério da Gestão, na AGU e ver como é que a gente caminha. E, depois, o governo tem que avaliar se vai enfrentar essa discussão com o Congresso.

Devem participar dessas discussões profissionais de vários partidos, de várias universidades, de várias áreas do conhecimento, para que também a sociedade faça essa conversa em conjunto.

Não é uma conversa de partido A, partido B, é uma conversa de país. É uma conversa que envolve o mundo do Direito, que envolve a área econômica, e que envolve os ministérios finalísticos. É uma conversa que envolve a União, estados e municípios. E é uma conversa que envolve os Três Poderes. Não é uma conversa do governo. É uma conversa do país melhorado.”

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