Autoria em crise: direitos autorais na era da IA generativa

A história da interrelação entre a inteligência artificial e o Direito é rica e multifacetada. Desde as primeiras tentativas de codificar legislação em programas de computador até os modelos sofisticados de raciocínio baseado em casos, argumentação e meta-raciocínio, o campo evoluiu significativamente. A exploração de diversas abordagens, a incorporação de insights da filosofia do direito e da ciência da computação, e o desenvolvimento de ferramentas práticas ilustram o dinamismo da área, ainda em constante transformação.[1]

Um dos grandes desafios regulatórios é a proteção e a atribuição de direitos autorais em face da ampliação do acesso aos sistemas de inteligência artificial generativa. O desenvolvimento de máquinas generativas desafia as noções tradicionais de autoria na lei de direitos autorais, levantando questões sobre quem deve ser considerado o autor de obras criadas com o auxílio ou por meio dessas tecnologia.

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Um primeiro aspecto a ser considerado é que a IA atual não é propriamente inteligente, no sentido de máquinas com cognição de nível humano. Na verdade, os sistemas de IA produzem resultados úteis detectando padrões em dados e usando conhecimento e regras codificados por pessoas.[2] A concepção de uma “IA Forte” ou “Inteligência Artificial Geral (AGI)”, que envolve máquinas com habilidades cognitivas de nível humano ou superior, é ainda apenas aspiracional, inexistindo evidências de desenvolvimento próximo.

Atualmente, os sistemas de IA produzem resultados inteligentes aproveitando padrões, regras e heurísticas em contextos específicos e limitados. A IA geralmente tem desempenho ruim em áreas conceituais, abstratas, carregadas de valores, abertas, orientadas a políticas ou julgamentos, que exigem senso comum ou intuição, persuasão ou compreensão do significado de conceitos humanísticos do mundo real.[3]

Jane C. Ginsburg e Luke Ali Budiardjo, autores de “Authors and Machines”, propõem um modelo de autoria estruturado em dois pilares essenciais: concepção mental (a ideação e o desenvolvimento intelectual da obra) e execução física (a materialização dessa concepção em uma forma tangível). Eles argumentam que uma definição coerente de autoria deve levar em conta ambos os aspectos. Os autores oferecem uma estrutura conceitual importante para o debate sobre a autoria na era da IA generativa.

Ao deslocar o foco da capacidade criativa da máquina para o papel e a contribuição dos humanos envolvidos, eles fornecem uma base para analisar casos concretos e para a possível evolução da legislação de direitos autorais. A distinção entre concepção e execução e a análise do grau de envolvimento humano em cada etapa são cruciais para determinar a autoria em obras geradas por IA. A possibilidade de obras sem autor também levanta questões significativas sobre a proteção de tais criações sob o regime de direitos autorais.[4]

Por outro lado, alguns tribunais ao redor do mundo podem ter uma visão própria sobre as criações exclusivas de sistemas de inteligência artificial. Nos Estados Unidos, o Tribunal de Apelações dos EUA para o Circuito do Distrito de Columbia concluiu que uma imagem criada pelo sistema de IA “Dabus”, de Stephen Thaler, não tinha direito à proteção de direitos autorais e que apenas obras com autores humanos podem receber tal proteção.[5] A peculiaridade é que o aludido sistema supostamente seriam senciente e independeria de qualquer comando humano para criação de arte.

Parece-nos pertinente a diferenciação proposta por Ginsburg e Budiardjo entre concepção humana e mera execução. Os sistemas de IA generativa que obedecem a comandos humanos, os prompts, podem ser  percebidos como mera ferramenta de apoio ao criador, agilizando o processo criativo, mas não o substituindo. Nesse sentido, os direitos autorais sobre o resultado dos comandos humanos mereceriam proteção legal.

Esta distinção cria uma linha divisória no tratamento legal de obras relacionadas à IA, com implicações profundas para o desenvolvimento de produtos e serviços baseados nesta tecnologia. Em um contexto de guerra comercial, como o que se observa entre EUA e China, a compreensão sobre o alcance dos direitos autorais pode impactar diretamente a competitividade das empresas americanas frente a concorrentes chineses, que podem operar sob regimes autorais menos restritivos.

No Brasil, o PL 2338/2023 — conhecido como Marco Legal da Inteligência Artificial — ainda não trata diretamente da titularidade de direitos autorais sobre obras geradas por IA, o que evidencia a urgência de um debate sobre o tema.


BENCH-CAPON, Trevor et al, A history of AI and Law in 50 papers: 25 years of the international conference on AI and Law.

BRITTAIN, Blake. Tribunal dos EUA rejeita direito autoral para arte gerada por IA sem criador “humano”. Veiculado em 18/03/2025. Disponível em: <https://br.investing.com/news/technology-news/tribunal-dos-eua-rejeita-direito-autoral-para-arte-gerada-por-ia-sem-criador-humano-1494046>. Acesso: 10 abril 2025.

GINSBURG, Jane C.; BUDIARDJO, Luke Ali, Authors and Machines, Berkeley Technology Law Journal, 2019.

SURDEN, Harry, Artificial Intelligence and Law: An Overview, 2019.

[1] BENCH-CAPON, Trevor et al, A history of AI and Law in 50 papers: 25 years of the international conference on AI and Law.

[2] SURDEN, Harry, Artificial Intelligence and Law: An Overview, 2019.

[3] Ibid., p. 1322–1323.

[4] GINSBURG, Jane C.; BUDIARDJO, Luke Ali, Authors and Machines, Berkeley Technology Law Journal, 2019.

[5] O caso específico envolveu Stephen Thaler e seu sistema de IA “Dabus”, que havia criado independentemente uma obra intitulada “A Recent Entrance to Paradise”. O Escritório de Direitos Autorais dos EUA rejeitou o pedido de proteção em 2022, e esta decisão foi mantida pelo tribunal de apelações, que reiterou que a autoria humana é um requisito fundamental dos direitos autorais”, baseando-se em “séculos de entendimento estabelecido. Veja, sobre o tema: BRITTAIN, Blake. Tribunal dos EUA rejeita direito autoral para arte gerada por IA sem criador “humano”. Veiculado em 18/03/2025. Disponível em: <https://br.investing.com/news/technology-news/tribunal-dos-eua-rejeita-direito-autoral-para-arte-gerada-por-ia-sem-criador-humano-1494046>. Acesso: 10 abril 2025.

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