Já comentei aqui no JOTA as inúmeras aberrações jurídicas que boa parte dos ministros do STF vêm cometendo no julgamento dos casos que envolvem a chamada pejotização. Desde a redação de um verbete de repercussão geral amplo (Tema 725), sem qualquer aderência aos precedentes que invoca, passando pela admissibilidade de reclamações para reexaminar provas até a completa ignorância da distinção entre terceirização e pejotização – isso para não falar da aplicação do princípio genérico da livre iniciativa para subtrair direitos sociais concretos dos trabalhadores previstos nos artigos 7º e 8 da Constituição –, a maioria dos ministros tem tomado decisões que simplesmente subvertem todo o Direito do Trabalho tal como era entendido em nosso país nos últimos 80 anos.
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Acompanhando essas reclamações mais recentes, o que mais tem me chocado é a ignorância cavalar de alguns ministros do conceito de fraude trabalhista, que é previsto de forma expressa no artigo 9º da CLT: “são nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.
Quando leio a fundamentação de tais reclamações, pergunto-me por que os ministros do STF (ou seus assessores) não se dão ao trabalho mínimo de abrir a CLT para julgar casos trabalhistas.
O conceito de fraude trabalhista (que, note-se, é acolhido em todos os demais países da Europa, da América Latina e mesmo nos EUA) foi desenvolvido para proteger a pedra angular do Direito do Trabalho: o contrato realidade. A legislação laboral surgiu historicamente para superar o contrato de locação de mão-de-obra do Direito Civil que, em razão do princípio privatista da liberdade contratual, não estava apto a regular as relações assimétricas entre capital e trabalho decorrentes do advento da Revolução Industrial.
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Assim, o Estado passou a limitar a liberdade de contrato, mediante de normas de ordem pública, estabelecendo que certos aspectos fundantes do contrato de trabalho não poderiam ser negociados livremente entre patrão e empregado: salário-mínimo, limites à jornada, descanso obrigatório, proibição de trabalho de crianças, restrições ao trabalho das gestantes, etc.
Para que tudo isso funcionasse criou-se uma “supernorma de ordem pública”: a de que a caracterização do contrato de trabalho independeria da vontade das partes: presente um estado de subordinação jurídica, o contrato é considerado como de emprego, seja qual for a sua forma instrumental escrita. Isso era necessário, uma vez que o contrato de trabalho, sendo um contrato de adesão (pois o empregado dele depende para sua subsistência), poderia ser disfarçado sob outras formas contratuais para evitar a incidência das normas estatais compulsórias.
Portanto, a legislação trabalhista (no Brasil e no além-mar) estabelece que a subordinação deve ser constatada como um fato da realidade, pouco importando o nomem juris que se lhe atribua no papel. Ou seja, a “fraude trabalhista” caracteriza-se, simplesmente, quando há uma dissociação entre fato e forma, isto é, quando a subordinação, pela presença de comando hierárquico disciplinar, dependência econômica e não-eventualidade é mascarada por um contrato diverso do contrato de emprego (contratos de prestação de serviços, de trabalho autônomo, de trabalho voluntário ou cooperado, etc).
O próprio ministro Alexandre de Moraes, em seu voto na ADPF 324, já reconheceu isso, nos seguintes termos:
“Se houver uma ilicitude travestida de fraudulenta terceirização, não se trata aqui, de terceirização, se trata de uma fraude, cuja roupagem dada de forma fraudulenta foi um contrato de prestação de serviços. Nesses casos, obviamente, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização dos responsáveis. O Direito não vive de rótulos. (…) O Direito vive da análise real da natureza jurídica das relações e aqui, no caso, das relações contratuais”.
Ou seja, o conceito de “fraude contratual”, no Direito do Trabalho, é diferente do conceito de fraude contratual no Direito Civil ou Empresarial, onde ainda vigora o princípio da liberdade de contrato (ainda que mitigada em certos casos, como no do consumidor) em razão da inexistência de hierarquia funcional entre os contratantes.
Pois bem, em diversas reclamações, ministros do STF têm reiteradamente afirmado não haver prova – tal como se exige no Direito Civil – de “vício de vontade” no ato de assinatura dos contratos civis entre a suposta pessoa jurídica do trabalhador e a do tomador do trabalho. Ora, nunca se exigiu, na lei, na doutrina ou na jurisprudência trabalhista, que houvesse a necessidade de demonstração de vícios de vontade para se evidenciar fraude ao contrato de trabalho.
É fato público, notório e evidente pela sua natureza, de que o patrão que oferece trabalho está em condições de impor as condições contratuais ao trabalhador e que esse, quase nunca, está em posição de exigir que seja contratado como “empregado”. É o que a célebre juíza da Suprema Corte dos EUA, Ruth Bader Ginsburg, chamou de contrato take it or leave it, em seu voto no caso Epic System vs. Lewis (2017), referindo-se à imposição unilateral de condições contratuais pelo empregador ao empregado.
Note-se que essa definição de fraude trabalhista era pacífica e remansosa em nossos tribunais desde que a CLT entrou em vigor, há mais de 80 anos, e nunca se a questionou! O que mudou então para que o STF subvertesse esse instituto? Mudou a legislação? Mudou a Constituição? Nada disso!
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Lembremos que, supostamente, o Tema 725 foi afirmado nos precedentes sobre a constitucionalidade da lei de terceirização. Ocorre que, a despeito de alteração sobre permissivo para subcontratação em atividade-fim, em nenhum ponto da Reforma Trabalhista houve mudança ou mitigação do conceito de fraude tal como posto no artigo 9º da CLT.
Para tentar dar algum verniz de “juridicidade” em seus votos, os ministros do STF têm argumentado que certos trabalhadores que assinam os contratos de pejotização não estariam em condição de vulnerabilidade de modo a atrair a incidência do artigo 9º. da CLT. Ou seja, na visão desses julgadores, a fraude somente poderia ser assim considerada se demonstrado que o trabalhador de fato estava em posição de hipossuficiência e não de hipersuficiência.
Ora, para verificar isso, seria necessário analisar a prova produzida no processo, o que é vedado em sede reclamação constitucional. Aliás, a verificação disso, nesses processos, já foi feita, com o contraditório e ampla defesa, na Justiça do Trabalho. Observe-se que somente identificar o trabalhador por sua profissão e remuneração, por si só, não é indicativo de hipossuficiência.
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Por exemplo, um médico que ganha remuneração expressiva como plantonista em um hospital pode muito bem manter relação contratual assimétrica, de plena subordinação hierárquica-disciplinar e de total dependência econômica, em relação ao tomador do seu trabalho.
Além do mais, o STF tem aplicado essa premissa a uma gama variada de trabalhadores, inclusive, até mesmo, àqueles que não têm curso superior ou que ganham dois ou três salários-mínimos, como corretores de imóveis, técnicos de enfermagem e advogados em início de carreira. Acreditar que esses trabalhadores estão em condições de igualdade e de plena liberdade na hora de celebrar um contrato “pejotizado” é o mesmo que admitir que a raposa será convidada de honra à mesa do galinheiro.