O julgamento da ADPF das Favelas: avanços, alertas e inovações

Na última quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o mérito da ADPF 635, que discute a excessiva letalidade da polícia do Rio de Janeiro. Após quase seis anos de tramitação, marcados pela luta incansável por direitos capitaneada populações de favela do Rio de Janeiro, o momento é de fazer um balanço e avaliar os avanços, alertas e inovações inseridos na decisão.

Avanços

A ADPF 635 indiscutivelmente impactou de maneira positiva o quadro de letalidade policial no Rio de Janeiro. Em 2019, quando a ação foi ajuizada, as polícias do Rio mataram 1.814 pessoas. Em 2024, esse número caiu para 699 – uma redução de mais de 60%. De lá para cá, a ação estabeleceu protocolos de atuação e de comunicação, impôs restrições a práticas que causam risco excessivo à vida da população e obrigou o uso de câmeras nas fardas e viaturas policiais.

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Acima de tudo, a ADPF 635 desbloqueou a paralisia institucional que normalizava a violência contra os mais pobres, e colocou no centro do debate público nacional a questão da violência policial. Como disseram os ministros do STF em seu voto conjunto, “não há, nem pode haver, antagonismo entre a proteção de direitos humanos e fundamentais e a construção de políticas de segurança pública compatíveis com a Constituição”.

A decisão de mérito sedimentou e aprofundou alguns desses avanços. Além da exigência de câmeras, há novas regras e garantias para permitir perícias independentes, etapa essencial na elucidação de abusos. Agora, cabe ao Ministério Público – e não às próprias polícias – a investigação dos casos em que policiais causam mortes.

Ainda, a obrigação de publicar dados desagregados de letalidade permitirá não apenas ao Estado, mas também à sociedade civil, uma melhor compreensão do que de fato ocorre no Rio de Janeiro.

Soma-se a isso uma medida central da ADPF 635: o Conselho Nacional do Ministério Público (CNPM), por meio de grupo de trabalho específico, acompanhará o cumprimento da decisão, pelo período mínimo de dois anos e com participação da sociedade civil e de especialistas. O monitoramento permitirá que o CNMP, as instituições e a sociedade levem qualquer notícia de violação à decisão ao Supremo Tribunal Federal novamente.

Também há avanços que ficaram aquém do rigor necessário. Exemplo disso é a reestruturação das perícias, que se tornou medida meramente programática, dependente da colaboração da União Federal. Por sua vez, o afastamento de policiais envolvidos de forma reincidente em mortes também deixou a desejar. Como se apontou na ação, 0,71% do efetivo policial foi responsável por 50,8% da letalidade policial no Rio de Janeiro.

O dado evidencia a necessidade de afastamento imediato desses agentes, para que sejam apuradas as causas e oferecidos o apoio psicológico e o treinamento necessários. No entanto, a decisão do Supremo, embora tenha determinado o afastamento de tais agentes, condicionou-o à decisão dos psicólogos das forças de segurança. Imersos no ethos institucional das próprias polícias, é de se indagar se estes profissionais terão incentivos para efetivamente recomendar tais medidas.

Alertas

Apesar dos avanços trazidos pela decisão de mérito, a sociedade civil deve se manter atenta aos recuos que a decisão consensual da Corte representa, tanto em comparação com o voto originariamente proferido pelo ministro relator, quanto com as decisões anteriores do Supremo.

O primeiro sinal de alerta decorre da afirmação de que o estado do Rio teria demonstrado “compromisso significativo” com a ADPF, afastando-se assim o estado de coisas inconstitucional que havia sido reconhecido. O posicionamento surpreende porque, ao longo dos anos, foram incontáveis atrasos, descumprimentos e ataques de agentes públicos do Rio de Janeiro à ADPF 635 e ao STF – inclusive pelo próprio governador do estado.

Basta lembrar a violenta Operação Exceptis que, em um só dia, deixou 28 mortos, e cujo nome ironizava a decisão que restringira operações policiais a hipóteses absolutamente excepcionais durante a pandemia.

A necessidade de atenção vai além do tom ou narrativa da decisão consensual. Em dois pontos sensíveis, os direitos fundamentais dos moradores de favelas ficaram desprotegidos. Com a decisão final, o uso de unidades escolares e de saúde como base operacional passou a ser autorizado “em caso de extrema necessidade” – cuja justificação posterior pode gerar apenas mecanismos fracos de limitação de abusos pelas autoridades locais.

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Além disso, a decisão voltou a permitir o uso de helicópteros como plataformas de tiro, sem restrição – em contrariedade até mesmo às orientações da Organização das Nações Unidas sobre o tema.

Assim, quando policiais interromperem aulas de crianças ou exames de pacientes para usar o espaço como parte do avanço de sua incursão, as forças de segurança buscarão afirmar que esta medida encontra legitimação na decisão do Supremo. Quando tiros de fuzil forem disparados a esmo por um helicóptero em movimento, também se buscará fundamentar a ação na decisão do Supremo.

É de se questionar, então, se o tribunal estará disposto a agir ou se restará a resignação com uma decisão que deixou de ir longe o suficiente na proteção de crianças e moradores de favelas.

O plano apresentado pelo estado e homologado pelo Supremo também deixou muito a desejar. Não há previsão de medidas, cronograma ou orçamento, como havia requisitado o tribunal. Nenhuma das características exigidas de um plano de processo estrutural, como definido pelo STF na ADPF 347, foi atendida.

Como feita, a homologação impede os atores envolvidos de fiscalizar, com clareza, o cumprimento das medidas pretendidas, reduzindo a etapa ao acompanhamento dos indicadores de letalidade – os fins –, sem que haja possibilidade de escrutínio mais efetivo sobre os meios adotados pelo estado.

Inovações

O julgamento de mérito também trouxe novos debates à mesa. De um lado, a ADPF 635 parece ter passado por significativa mudança de escopo. Se antes ela se restringia à letalidade policial, o julgamento de mérito alargou o debate para a segurança pública em geral. A ordem para elaboração de um plano de reocupação das áreas dominadas por organizações criminosas é a faceta mais evidente dessa transformação. Não há dúvida de que algo precisa ser feito para enfrentar essa realidade.

A decisão, contudo, não definiu de maneira clara quanto o que pretende o Supremo. Tampouco estabeleceu limites e exigências específicas sobre como tal projeto de retomada de território seria implementado. É razoável e legítimo, então, o receio que as populações de favela manifestam sobre o risco de acirramento de violações da direitos fundamentais, a pretexto de retomar territórios. Não se trata de mera especulação, já que nem o governo do estado, nem a história do Rio de Janeiro dão sinais evidentes de um projeto que coloque no centro das preocupações os direitos dos morados de favela.

No âmbito da segurança pública, o Supremo ainda determinou que a Polícia Federal deverá apurar, além dos crimes de organizações criminosas que tenham repercussão interestadual e internacional, aqueles que implicam graves violações de direitos humanos – abrindo uma nova via de atuação institucional e de denúncia por parte da sociedade civil.

De outro lado, o julgamento inovou no julgamento per curiam, em que a Corte fala a uma só voz. A prática traz maior racionalidade, eficiência e unidade para a Corte, mas o caso escolhido para inaugurar o modelo e a forma como ele foi implementado suscita questões. Ao buscar a unanimidade em tema que conta com profundas divergências, o Supremo pode acabar por nivelar por baixo as exigências, restrições e determinações contidas na decisão.

Se isto não é necessariamente um problema em diversas matérias, a conclusão é diversa quando se trata de direitos fundamentais – que, como trunfos, merecem nivelamento por cima.

É verdade, de outra parte, que o consenso pode haver trazido para dentro da decisão colegiada o apoio de ministros que eventualmente julgariam a ADPF integralmente improcedente. A opacidade quanto ao que ocorreu efetivamente e ao que teria ocorrido, se colhidos os votos individualmente, apenas indica mais um ponto de atenção para a atuação da Corte no caso.

Conclusão

Não há dúvidas de que a ADPF 635 representou, até aqui, um histórico avanço na proteção dos direitos dos moradores das favelas do Rio de Janeiro. No plano simbólico, as favelas ocuparam o Supremo Tribunal Federal a cada sessão de julgamento, demonstrando que a distância até Brasília não é maior que a necessidade de lutar por direitos fundamentais. No plano político, a ADPF 635 deslocou para o centro do debate estadual e nacional a questão da letalidade policial.

No plano jurídico, a ação assegurou o avanço em medidas de controle e de redução da letalidade – algumas antes impensáveis e hoje consolidadas, como o emprego de câmeras em instituições de segurança. Perderam, no Supremo Tribunal Federal, os partidários do “tiro na cabecinha” como solução das mazelas sociais do estado.

Com a decisão de mérito, o governo do estado não mais poderá atribuir ao tribunal a culpa pelos problemas na segurança pública, mas também não poderá deixar que a letalidade aumente, sob pena de atuação dos mecanismos de monitoramento implementados.

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Se o governo reclamava que estava “preso” pela ADPF, ele agora conseguiu uma liberdade condicional: está de tornozeleira eletrônica, e tanto o Supremo quanto os movimentos sociais continuarão a vigiá-lo de perto. Preocupações legítimas são apontadas, a despeito disso, pelas populações de favela que depositaram na ADPF 635 a esperança na transformação do quadro de violações sofridas.

Corretamente, os grupos apontam que o tribunal perdeu a chance de avançar a partir das decisões que já vinham sendo implementadas e, com isso, ficou aquém da proteção que a Constituição de 1988 assegura às populações de favela. Inúmeras famílias, como as de Ágatha Félix, João Pedro Mattos e Kathlen Romeu, seguem sem respostas institucionais à altura das injustiças que sofreram. Engana-se, no entanto, quem pensa que elas deixarão de buscá-las. A luta por direitos continua.

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