Após a turbulência gerada pelo surgimento e desaparecimento de grandes players especializados no comércio de milhas, as companhias aéreas – em particular as que operam no Brasil – agora enfrentam uma nova ameaça que pode mudar o cenário dos programas de fidelidade: a judicialização crescente envolvendo a comercialização das milhas acumuladas. O horizonte, antes promissor, agora se apresenta com nuvens de incerteza, podendo forçar um pouso forçado nos céus do setor aéreo.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Os programas de milhagem foram concebidos com um objetivo claro: premiar os passageiros frequentes e, ao mesmo tempo, fortalecer a lealdade à companhia aérea. No entanto, o que era para ser uma ferramenta estratégica passou a ser distorcido pela comercialização desenfreada de milhas, criando um ambiente onde os riscos operacionais e financeiros se multiplicam, abrangendo desde perdas diretas de receitas até o aumento das fraudes. E, em um mercado já saturado, a escalada desse comércio paralelo se torna ainda mais desafiadora, comprometendo não apenas as finanças das empresas, mas também a experiência dos passageiros legítimos.
De acordo com a Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização** (ABEMF), no terceiro trimestre de 2024, o Brasil registrou impressionantes 320,2 milhões de cadastros em programas de fidelidade, o que representa um crescimento de 3,2% em relação ao mesmo período de 2023. Isso reflete o apetite do consumidor por recompensas e benefícios, mas também coloca em evidência a magnitude do problema do comércio paralelo de milhas, que infla artificialmente a demanda por assentos e distorce os valores de resgates. O resultado? Passagens mais caras para aqueles que, de fato, seguem as regras dos programas, e um sistema onde as milhas de viajantes legítimos se tornam cada vez mais difíceis de serem utilizadas.
A lógica por trás dos programas de milhagem é simples, mas delicada: existe uma estrutura de preços e assentos que depende de um equilíbrio entre a oferta e a demanda. Quando esse equilíbrio é comprometido pela venda indiscriminada de milhas, não apenas há a diminuição da oferta de assentos, mas também a necessidade de reajustes constantes nos valores dos resgates, prejudicando diretamente o consumidor fiel. Além disso, o aumento desse mercado paralelo abre portas para fraudes sofisticadas, que vão desde a criação de contas falsas até o uso de cartões de crédito fraudulentos, uma realidade que prejudica tanto as empresas quanto os consumidores que operam dentro da legalidade.
Nesse contexto, é crucial que as companhias aéreas tenham a liberdade de impor restrições sobre a comercialização das milhas, algo que já é feito através de cláusulas contratuais. Contudo, esse direito tem sido constantemente contestado no Judiciário, gerando um aumento no número de ações judiciais movidas por consumidores que tentam reverter o cancelamento de contas ou bilhetes emitidos de forma irregular. No entanto, essas ações muitas vezes se baseiam em uma interpretação equivocada do princípio da legalidade, desconsiderando a natureza privada e contratual das relações entre passageiros e empresas aéreas.
O princípio da legalidade, quando aplicado de forma distorcida, não pode ser usado como um obstáculo à autonomia das companhias aéreas. A relação entre as empresas e seus clientes deve ser regida pela autonomia contratual, algo que assegura previsibilidade e segurança jurídica para o setor. A ausência de uma legislação específica sobre a comercialização de milhas não pode ser vista como um “cartão branco” para a venda irrestrita, assim como outros mercados, como o bancário, operam sem regulamentação explícita, mas com a plena validade de suas normas internas.
As restrições que as companhias impõem visam não apenas preservar a integridade dos programas de fidelidade, mas também evitar a distorção do mercado e proteger os consumidores legítimos. A continuidade dessa judicialização descontrolada pode gerar um efeito colateral devastador: o enfraquecimento das bases contratuais e o comprometimento da sustentabilidade desses programas no longo prazo.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
É essencial que o Judiciário reconheça a validade das restrições impostas pelas companhias aéreas e defenda a autonomia contratual, para garantir a segurança jurídica que o setor aéreo tanto precisa. Sem essa proteção, o risco de um “pouso forçado” dos programas de milhas no Brasil é real, prejudicando milhões de consumidores e comprometendo a viabilidade do mercado aéreo nacional.
Em um cenário onde a sustentabilidade dos programas de milhas depende do equilíbrio entre inovação, proteção contra abusos e o respeito às regras estabelecidas, o Judiciário tem um papel crucial: deve garantir que a legalidade não seja usada como um pretexto para desestabilizar a autonomia das empresas. Caso contrário, o impacto será imenso, não só para as companhias aéreas, mas também para os consumidores que dependem desses programas para tornar suas viagens mais acessíveis.