Artigo 19 do Marco Civil: garantia ou ameaça ao futuro da internet brasileira?

A regulação das plataformas digitais tornou-se uma das questões mais urgentes do Brasil, abrangendo tópicos desde notícias falsas até debates políticos. E embora tenha estado no centro do debate público por anos, o tema ganhou um novo senso de urgência diante do acirramento das tensões entre autoridades brasileiras e grandes empresas do setor – e da consequente celeridade na busca por um desfecho, tanto no Judiciário quanto no Legislativo.

No centro desta discussão está o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que estipula que remoções obrigatórias de conteúdo online requerem uma ordem judicial. O Supremo Tribunal Federal delibera atualmente sobre sua constitucionalidade e a expectativa é de que o julgamento – suspenso devido a um pedido de vista no ano passado – seja retomado neste semestre.

Ainda que a decisão da corte se concentre em apenas um dos 32 artigos do Marco Civil, ela impactará significativamente as experiências online de todos os brasileiros, influenciando o equilíbrio entre liberdade de expressão e censura.

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Declará-lo inconstitucional prejudicaria a segurança jurídica, aumentaria os riscos de censura e desestabilizaria o ecossistema digital do país, uma vez que esta não é meramente uma questão de regular mídias sociais. Trata-se de salvaguardar uma internet aberta e funcional para todos.

Artigo 19 do Marco Civil foi criado como um caminho para lidar com as preocupações do governo e dos cidadãos sobre conteúdo ilegal ou prejudicial, enquanto protege os intermediários através de uma rota judicial padronizada.

Ele estabelece que esses entes – que incluem provedores, plataformas e serviços técnicos – podem ser responsabilizados por conteúdo criado por terceiros apenas se deixarem de removê-lo após receberem uma ordem judicial. 

Resultado de um amplo debate democrático – assim como todo o Marco Civil – tal estrutura foi projetada para prevenir a censura e garantir que a remoção de conteúdo seja justa e não arbitrária. E garante um equilíbrio adequado entre proteger a sociedade contra conteúdos prejudiciais e assegurar a livre circulação de informações.

O julgamento no Supremo registrou até aqui posições variadas entre os ministros da corte. Até aqui, dois deles, Luiz Fux e Dias Toffoli, votaram pela inconstitucionalidade ampla do Artigo 19, enquanto o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, defendeu sua manutenção com ajustes, declarando-o parcialmente inconstitucional, mas sem alterar o texto. Assim, seria preservada a exigência de uma ordem judicial para a remoção de conteúdo, com exceções estabelecidas para casos específicos.

O próximo voto, do ministro André Mendonça, é bastante aguardado. Ele já expressou preocupação sobre a remoção de conteúdo sem uma ordem judicial, sugerindo alinhamento com a posição de Barroso.

É importante que se ressalte que o artigo 19 não oferece simplesmente “proteção às grandes plataformas”, como alguns sugerem. Ao contrário, ele serve como um pilar que garante segurança jurídica a todos os componentes do ecossistema digital – não apenas às redes sociais.

De acordo com a pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), cerca de 86% dos brasileiros são usuários da internet. Isso significa que qualquer mudança na regulamentação atual que não seja executada com cautela pode impactar diretamente quase toda a população brasileira.

Quando um brasileiro acessa um site, sua solicitação viaja através de múltiplos pontos de interconexão e processamento, como o DNS (sistema de nomes de domínio), provedores de backbone e servidores de hospedagem. Em muitos casos, CDNs (redes de distribuição de conteúdo) otimizam a entrega armazenando cópias de conteúdo em servidores distribuídos geograficamente pelo país, reduzindo a latência e melhorando a experiência do usuário. Esses são todos exemplos do que chamamos de intermediários, e são essenciais para que a internet funcione adequadamente.

Esta interdependência técnica significa que regulamentações mal concebidas, que não diferenciem as funções específicas de cada intermediário, podem ter consequências de longo alcance para toda a infraestrutura.

Assim, declarar o artigo 19 inteiramente inconstitucional seria como destruir a fundação de uma casa por causa de uma rachadura na parede – teria um efeito cascata, prejudicando toda a infraestrutura da Internet. Sem a proteção do artigo 19, os intermediários podem enfrentar pressão para remover conteúdo sem o devido processo, levando à censura e instabilidade.

Ainda que responsabilizar as plataformas por conteúdo ilegal seja uma preocupação legítima, a solução deve considerar a complexidade técnica envolvida e evitar medidas desproporcionais que poderiam prejudicar toda a rede.

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A forma mais apropriada de responsabilização deve ser baseada na função específica que cada intermediário desempenha, permitindo foco mais preciso para enfrentar os verdadeiros desafios regulatórios. Manter a exigência de uma ordem judicial para remover conteúdo – exceto em casos graves, como já definido no artigo 21 do Marco Civil da Internet – é essencial para prevenir abusos.

O Brasil pode aprender com outras abordagens regulatórias. Na Europa, o Digital Services Act (DSA) responsabiliza as plataformas por conteúdo ilegal, mas protege cuidadosamente os intermediários técnicos que não interferem no conteúdo, implementando mecanismos robustos de transparência e devido processo.

A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 19 moldará o futuro da internet no Brasil. Os ministros devem escolher entre preservar uma internet aberta e acessível para todos – pequenos negócios, criadores de conteúdo e usuários comuns – ou estabelecer um sistema que pode resultar em insegurança jurídica e maior censura. É fundamental, portanto, que o Supremo garanta uma regulamentação que fortaleça, em vez de desestabilizar, o ecossistema da internet no Brasil.

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