Dormindo com o inimigo: resistir para existir

A violência contra a mulher é um dos crimes mais cruéis, pois o algoz não apenas fica à espreita, como, muitas vezes, divide a cama com a vítima. Aquele que ameaça, bate, persegue, abusa e manipula, é o companheiro que busca os filhos na escola e coleciona fotos de tempos felizes no porta-retrato da sala.

As mulheres foram ensinadas a não reclamar, a não se expor, a se “preservar” perante a sociedade. Não à toa o assunto ainda é um tabu nas famílias. São poucas as que têm coragem de reconhecer o próprio sofrimento e um grupo ainda mais ínfimo aceita tornar sua luta pública. 

Por isso, a jornada da vítima de violência doméstica é marcada por julgamentos, vergonha e incredulidade. Segundo o Datasenado, 27% das brasileiras, ou seja, mais de 28 milhões de mulheres, já sofreram com esse tipo de crime. Mas, mesmo assim, ainda é difícil falar do assunto. E se não falamos, não há luz, não há política pública, não há mudança. 

Uma das mulheres que resolveu sair das sombras e transformar seu sofrimento em uma bandeira foi a auditora-fiscal da Receita Federal, Marielle Dornelas. Graças à coragem de tornar pública a violência doméstica que sofria, ela foi a primeira servidora a conseguir remoção de cidade com base na Lei Maria da Penha.

Sua luta foi abraçada pelo Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal ( Sindifisco Nacional) e, em agosto de 2023, o secretário Robinson Barreirinhas assinou a Portaria RFB 340/2023, assegurando a todos os servidores o direito de remoção para garantir sua segurança e de seus familiares, em situações de violência.

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O caso sensibilizou ministérios, parlamentares e coletivos, até chegar à Presidência da República, que assinou, recentemente, um parecer garantindo a remoção em caráter prioritário para servidoras federais vítimas de violência doméstica, o JM 07/2024.

Foi preciso expor a situação vivida por Marielle, foi preciso que ela aguardasse seis anos para ter o direito de manter o seu emprego e sair de sua cidade. Por sorte, apoio e muita garra, ela viveu para contar a história e mudar a legislação. Infelizmente, esse não é o caso de milhares de mulheres.

Segundo relatório publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil registrou 1.463 casos de feminicídio em 2024 – ou seja, cerca de 1 morte a cada 6 horas. Os dados nos revelam que é urgente escalar essa decisão para servidoras municipais, estaduais e trabalhadoras da iniciativa privada. 

Segundo a doutora em Antropologia e pesquisadora, Rita Segato, a sociedade entende o crime contra a mulher como um crime menor. Por isso, é fundamental enfrentar a questão de frente, entender que o depoimento da vítima faz diferença e que as suas provas nem sempre serão físicas, até porque, quando se tornam, às vezes é tarde demais. 

Além de discutir políticas que diminuam o número de mortes de mulheres por feminicídio, também precisamos falar sobre o espaço das mulheres em posições de poder. A representatividade é essencial para se pensar e implementar políticas amplas, que respeitem e levem em consideração a realidade das mulheres brasileiras, sejam elas servidoras, trabalhadoras da iniciativa privada ou donas de casa. 

Há muito o que mudar, mas também somos muitas, e nossa união tem poder transformador. 

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