Desafios da legislação brasileira no combate ao tráfico de animais silvestres

O tráfico de animais silvestres no Brasil é uma das maiores ameaças à biodiversidade nacional. Essa prática ilegal não apenas compromete a sobrevivência de inúmeras espécies, mas fere direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal. Apesar da gravidade, o tratamento dado ao crime pela legislação brasileira ainda é brando, tornando a repressão ineficaz e incentivando a continuidade da atividade criminosa.

A Constituição Federal, em seu artigo 225, §1º, inciso VII, estabelece que o poder público e a coletividade têm o dever de proteger a fauna, vedando práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. A norma constitucional respalda os avanços éticos e científicos na compreensão dos direitos dos animais, marcando uma mudança paradigmática fundamentada no reconhecimento de sua senciência – a capacidade de sentir, perceber e experimentar sensações como dor, prazer e medo.

Esse princípio leva à concepção da dignidade e bem-estar animal e impõe a necessidade de que seus interesses fundamentais sejam protegidos. Sob essa ótica, considera-se que qualquer animal tem o direito a uma vida livre, em condições que se aproximem ao máximo de seu ambiente natural. A preservação dessa dignidade, portanto, deve estar pautada na não interferência humana.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Manter animais silvestres em cativeiro viola esse princípio ao privá-los de sua liberdade, restringindo comportamentos essenciais como voar, correr, procriar e interagir socialmente com outros indivíduos da mesma espécie. Além de representar um grave impacto para os ecossistemas — comprometendo sua capacidade de mitigar os efeitos das mudanças climáticas —, essa prática favorece a cultura da domesticação ilegal, beneficiando infratores e desconsiderando os direitos fundamentais dos animais.

Nesse contexto, a privação da liberdade pode configurar maus-tratos, ferindo não apenas a legislação ambiental, mas também princípios básicos de bem-estar animal.

Os números globais demonstram a gravidade do problema, impulsionado, principalmente, pela alta lucratividade. Segundo relatório da United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), publicado em maio de 2024, apreensões realizadas entre 2015 e 2021 indicaram a presença do tráfico de fauna e flora em 162 países, afetando cerca de 4.000 espécies.

O mercado ilícito de vida selvagem movimenta, segundo a Interpol, cerca de US$ 20 bilhões anualmente, sendo um dos crimes ambientais mais lucrativos do mundo. Já o Banco Mundial estima que as perdas econômicas globais decorrentes do comércio ilegal de vida selvagem podem atingir US$ 1 trilhão por ano, considerando que mais de 90% deste montante é referente aos danos aos serviços ecossistêmicos.

É evidente que esse crime demanda um enfrentamento proporcional — robusto e complexo — com equipes especializadas e instrumentos legais eficazes capazes de desarticular essas redes criminosas. No entanto, a legislação brasileira não acompanha essa necessidade. O tráfico de animais silvestres não possui tipificação penal autônoma, sendo enquadrado, de forma generalista, no artigo 29 da Lei Federal 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais).

O problema central está na pena prevista: por ser inferior a dois anos, a conduta é classificada como de menor potencial ofensivo (artigo 61 da Lei Federal 9.099/95), o que permite a aplicação de benefícios despenalizadores, como transação penal, suspensão condicional do processo, conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, não instauração de inquérito policial, entre outros. 

A flexibilização da resposta penal pode ser justificável para infrações de baixo impacto, mas se mostra ineficaz diante de crimes sistemáticos operados por redes estruturadas, como o tráfico de animais silvestres. Essa atividade criminosa envolve divisão de tarefas, logística sofisticada e articulação típica de organizações criminosas.

Para esses grupos, a concessão de benefícios despenalizadores enfraquece a repressão e perpetua a impunidade. Sem sanções mais severas, o tráfico de fauna segue prosperando, com riscos mínimos para seus operadores e danos irreparáveis à biodiversidade.

Reconhecendo essa fragilidade, diversas iniciativas legislativas buscam endurecer a punição para o tráfico de animais silvestres. O Projeto de Lei 4.548/2020 propõe aumentar a pena para reclusão de dois a cinco anos, enquanto o Senado Federal aprovou, em março de 2024, um projeto que eleva a pena para crimes de maus-tratos contra animais, silvestres ou domésticos, de três meses a um ano para um a quatro anos de detenção. Essas propostas são passos importantes, mas muitas ainda tramitam lentamente no Congresso Nacional, sem garantia de aprovação.

Diante desse vácuo legislativo, o Ministério Público tem adotado estratégias para aprimorar sua atuação contra o tráfico de animais silvestres. A Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio do projeto Libertas, elaboraram o Manual de combate ao tráfico de animais da fauna silvestre brasileira, oferecendo diretrizes para aumentar a efetividade da repressão.

Além disso, relatórios detalhados e sigilosos sobre as principais rotas de tráfico e a percepção do sistema de justiça sobre o tema têm sido disponibilizados a promotores atuantes nos estados que participaram do estudo.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Um exemplo bem-sucedido dessa abordagem é a Operação Curió Livre, realizada em 2019, pelo Ministério Público do Paraná. A ação desmantelou uma rede de tráfico de aves silvestres, resultando na prisão de diversos envolvidos e na apreensão de centenas de animais. O sucesso da operação se deve, em grande parte, à articulação entre diferentes órgãos de fiscalização e segurança pública, demonstrando que o combate ao tráfico de animais exige uma atuação coordenada e especializada.

O tráfico de animais silvestres não é apenas um problema ecológico, mas uma questão de segurança pública e justiça social, com impactos que vão além da perda da biodiversidade, afetando a economia, a saúde pública e o equilíbrio dos ecossistemas. Sem uma reforma estrutural na legislação e um endurecimento das punições, o Brasil seguirá impotente diante da destruição de seu patrimônio natural, sem instrumentos eficazes para coibir essa atividade criminosa. 

Adicionar aos favoritos o Link permanente.