Da norma à prática: como a saúde digital pode viabilizar a regionalização do SUS

A regionalização da saúde, desde a Constituição de 1988, é um dos pilares organizativos do SUS. Prevista no artigo 198 da Carta Magna, sua proposta é clara: organizar os serviços em uma rede regionalizada e hierarquizada, que promova descentralização, uso mais racional dos recursos públicos e acesso mais equânime à atenção à saúde em todo o país.

O Decreto 7.508/2011 reforça essa lógica ao definir região de saúde como um agrupamento de municípios com características sociais, econômicas e logísticas semelhantes, voltado à integração das ações e serviços.

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Na prática, porém, transformar esse princípio em realidade impõe uma série de desafios. Em diversas regiões do país, pacientes enfrentam longos deslocamentos para acessar cuidados que exigem maior estrutura, como exames especializados ou atendimento em unidades com suporte neonatal.

No Pantanal sul-mato-grossense, por exemplo, uma gestante de alto risco pode precisar viajar por horas para ser atendida em outro ponto da rede. Situações como essa evidenciam os obstáculos logísticos e estruturais da atenção especializada em territórios de grande extensão geográfica e mostram o quanto ainda precisamos avançar para consolidar arranjos regionais que garantam cuidado contínuo, próximo e coordenado.

Apesar do arcabouço legal e conceitual que ampara a regionalização, a promessa de um SUS verdadeiramente integrado segue, em grande parte, por cumprir. Iniciativas como o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (COAP), que buscavam fomentar a cooperação entre estados e municípios, tiveram baixa adesão e pouca efetividade. A ausência de incentivos concretos, somada à complexidade na divisão de responsabilidades entre os entes, dificulta o avanço das redes regionais.

A autonomia dos entes federados, essencial para a democracia, também impõe limites à articulação regional quando não há coordenação e financiamento compartilhado. Municípios com maior capacidade instalada tendem a concentrar, legitimamente, serviços de média e alta complexidade. O problema surge quando esse papel regional não é formalmente reconhecido, pactuado ou financiado de forma cooperativa — gerando sobrecarga, disputas por acesso e fragmentação da rede.

Se quisermos que a regionalização deixe de ser apenas um princípio previsto em norma para se tornar realidade na vida das pessoas, precisamos enfrentar seus entraves históricos com soluções viáveis e articuladas. Isso passa por fortalecer os mecanismos de pactuação entre entes federados, garantir financiamento adequado e, sobretudo, implementar estratégias que permitam superar barreiras logísticas e ampliar o acesso a serviços especializados em todo o território.

É nesse contexto que a saúde digital se destaca como uma aliada estratégica. Em regiões extensas e diversas, como Mato Grosso do Sul, a digitalização do SUS qualifica a gestão, reduz distâncias, encurta o tempo de espera e amplia o acesso de populações vulneráveis a serviços antes restritos aos grandes centros urbanos. A possibilidade de realizar teleconsultas, acessar exames por plataformas integradas e regular pacientes de forma mais coordenada são avanços que impactam diretamente na eficiência da rede.

Mais do que uma simples agenda tecnológica, a saúde digital se configura como um instrumento estruturante para viabilizar a regionalização, desde que sua implementação esteja ancorada em planejamento territorial, pactuação regional e na capacidade institucional dos entes locais.

A experiência de Mato Grosso do Sul ilustra como a saúde digital pode ser implementada de forma eficaz. O estado, alinhado às diretrizes do programa de saúde digital proposto pelo Ministério da Saúde, conduziu um processo de escuta e construção coletiva para desenvolver seus planos de saúde digital,  com base na realidade de cada macrorregião. Gestores municipais e estaduais participaram de oficinas que partiram de diagnósticos regionais, e resultaram em ações pactuadas, metas viáveis e estratégias voltadas à ampliação da telessaúde, à modernização das unidades e à integração dos sistemas de informação. Mais do que formular um plano, assumiram coletivamente o compromisso com sua continuidade.

Hoje, esses planos estão incorporados ao planejamento oficial do estado e representam uma mudança de estratégia: da saúde digital pensada como solução isolada para uma digitalização integrada à lógica regional, capaz de apoiar a reorganização das redes, qualificar a regulação e fortalecer a atenção primária.

Os resultados esperados vão além da infraestrutura. Espera-se mais integração entre os níveis de atenção, maior capacidade analítica para o planejamento em saúde e, sobretudo, um cuidado mais próximo das pessoas. Menos deslocamentos desnecessários, mais resolutividade na porta de entrada do sistema e acesso mais ágil às informações clínicas são apenas alguns dos impactos esperados na vida cotidiana dos usuários.

Planejar a saúde digital a partir do território — e não como uma solução genérica — é um caminho promissor para concretizar a regionalização. Em um país marcado por desigualdades e pela complexidade federativa, experiências como a de Mato Grosso do Sul demonstram que é possível reorganizar o SUS com pactuação, cooperação e uso inteligente da tecnologia. O futuro da regionalização depende da nossa capacidade de transformar dados em cuidado — e a saúde digital pode, sim, ser a ponte que nos leva até lá.

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