Subsídios à transição energética e desigualdade social

Pelo que se percebe da recente aprovação, pelo Congresso Nacional, de leis como a do Marco Legal do Hidrogênio (Lei 14.948, de 2.8.2024), do Mercado de Carbono (Lei 15.042, de 11.12.24) e do Combustível do Futuro (Lei 14.993, de 8.10.2024) e do Pacto pela Transformação Ecológica, assinada pelos Três Poderes, a transição energética têm sido uma das prioridades do país.

O Brasil começou a utilizar fontes renováveis de energia muito antes das preocupações internacionais com as mudanças climáticas, haja vista que a primeira usina hidrelétrica do país foi instalada em 1883[1]  e, em 1975, foi criado Programa Proálcool, como resposta à crise do petróleo.

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A abundância de recursos naturais, a extensão territorial com grande diversidade climática e as políticas públicas de incentivo à produção de energia renovável, entre outros fatores, contribuíram para que o país conte com cerca de 49,1% de fontes renováveis, em sua oferta interna de energia, valor que aumenta para 89,2%, quando se fala da participação de fontes renováveis na oferta de eletricidade.[2]

Ocorre que, de acordo com o Conselho Mundial de Energia[3], a sustentabilidade energética depende do atendimento de três dimensões fundamentais: sustentabilidade ambiental, segurança energética e equidade energética. A segurança energética pode ser compreendida como a oferta e disponibilidade de serviços energéticos a todo momento em quantidade suficiente e a preços acessíveis[4]. A equidade energética, por sua vez, consiste na universalização do acesso físico e econômico (affordability) à energia.

E, apesar de o Brasil ter alcançado excelentes resultados em matéria de sustentabilidade ambiental, o país não tem tido o mesmo desempenho no quesito equidade energética. Segundo o Conselho Mundial de Energia[5], na avaliação do ano de 2023, o Brasil obteve conceito A em segurança energética e sustentabilidade ambiental, porém C em equidade energética. Em razão de tais resultados, o Brasil ficou na 36ª posição[6] (de um total de 99 países), por exemplo, atrás da Malásia, Bulgária, Argentina, Chile, Uruguai, entre outros

Em virtude de o Brasil ter conseguido assegurar o acesso físico à energia elétrica para 99,8% da população brasileira[7], através do Programa Luz para Todos, em cerca de 20 anos, conclui-se que o principal motivo do desempenho insatisfatório do país em equidade energética se deve à falta de acesso econômico ou condições de pagamento da tarifa de energia elétrica.

A respeito das condições de pagamento pelo acesso à energia elétrica, cabe esclarecer que o valor final pago pelo consumidor é formado pela soma dos seguintes componentes: custos da geração, custos da transmissão e distribuição de energia, além de encargos setoriais e tributos – PIS/Cofins, ICMS e Contribuição para Iluminação Pública (CIP)[8].

Entre os principais encargos setoriais pagos na conta de luz, destacam-se a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), o Programa de Incentivo a Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) e a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC).

Esses encargos setoriais financiam diversas políticas públicas, incluindo programas sociais e incentivos para fontes renováveis, geração distribuída, para prover recursos para compensar os descontos de alguns agentes nas tarifas de transmissão e distribuição, para a equalização da tarifa de consumidores dos sistemas isolados e de distribuidoras de pequeno porte, bem como para irrigação, aquicultura e cooperativas.

A quantidade de componentes que integram atualmente a tarifa de energia elétrica, por si só, pode comprometer o acesso econômico (affordability) de populações de baixa renda a serviços energéticos. Isso decorre não só de as tarifas de energia elétrica pesarem no orçamento das famílias pobres cerca de cinco vezes mais que no orçamento das famílias com maior poder aquisitivo[9], como também do fato de os consumidores de energia, quando, do pagamento de encargos setoriais estarem, na prática, financiando diversos agentes do setor e até de outros setores (os quais, não raramente têm capacidade econômica superior à dos consumidores).

Por razões como estas, o consultor legislativo Juliano Vilela Borges dos Santos sustenta que ações financiadas pelos subsídios da CDE apresentam as características das políticas distributivas: benefícios concentrados e custos difusos (suportados pelos consumidores no caso)[10].

Em outras palavras, apesar de a maioria destas políticas custeadas pela CDE, por força de lei, beneficiarem grupos específicos de agentes, elas têm sido financiadas de modo predominante pelos consumidores, principalmente os cativos (do mercado regulado).

Juliano dos Santos divide as despesas com subsídios da CDE em quatro categorias distintas: (i) subsídios para tecnologias de geração específicas; (ii) subsídios setoriais de perfil social; (iii) subsídio para equalização tarifária; e (iv) subsídios para fora do setor elétrico[11].

Na sequência, aponta as políticas inseridas em cada uma das quatro categorias:

  • subsídios para tecnologias de geração específicas:
    1. fontes incentivadas (eólica, termossolar, fotovoltaica, pequenas centrais hidrelétricas, biomassa, outras fontes renováveis e gás natural): consistente em descontos de, pelo menos, 50% na TUSD e na TUST, (tarifas de uso de transmissão e distribuição)
    2. micro e minigeração distribuída[12]: de acordo com o Sistema de Compensação de Energia Elétrica, o consumidor/produtor de energia injeta na rede a energia por ele gerada mediante o recebimento de créditos que correspondem à tarifa cheia, a qual inclui os custos de geração, transmissão e distribuição.
    3. carvão mineral: confere desconto às termelétricas que adquirirem carvão de origem nacional;
  • subsídios setoriais de perfil social:
    1. universalização do acesso (físico) a energia elétrica do programa Luz para Todos
    2. tarifa social de energia elétrica aplicada a consumidores da Subclasse Residencial Baixa Renda, os quais são isentos do custeio de CDE e do Proinfa;
  • subsídios para equalização tarifária:
    1. Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) com escopo equalizar as tarifas praticadas nos sistemas isolados e no Sistema Interligado Nacional, via reembolso, sub-rogação e gestão de contrato de confissão de dívida e
    2. para distribuidoras de pequeno porte (menores que 700 GWh) por ano, para viabilizar o equilíbrio econômico-financeiro das distribuidoras sem onerar os consumidores atendidos;
  • subsídios para fora do setor elétrico:
    • para irrigação, aquicultura e cooperativas: subsídios que não precisariam ser custeados pelos consumidores de energia, mas pelo próprio Tesouro Nacional;

O mérito dessas políticas públicas custeadas por subsídios criados por lei não afasta a necessidade de se sempre refletir sobre as formas de financiamento destas políticas, as quais devem considerar se os benefícios são concentrados ou difusos e a forma mais justa de repartir os custos destes benefícios.

Constata-se, portanto, que os consumidores de energia, e, por vezes apenas os consumidores cativos, financiam a maior parte desses subsídios a setores que, por vezes, nem necessitam mais desse apoio financeiro, seja por utilizarem tecnologia madura, seja por terem se tornado competitivos (em comparação com outros), seja por terem capacidade econômica superior à classe de agentes que está os financiando.

Com base nessa análise, Juliano dos Santos conclui que a única destinação da CDE que tem natureza não regressiva é a Tarifa Social de Energia Elétrica cujos  “recursos são redistribuídos para programas que beneficiam, integral ou majoritariamente, consumidores pertencentes ao segmento de baixa renda”.

Por outro lado, denuncia “(…)Quanto aos demais incentivos, embora envernizados com alguma camada de mérito, merecem uma revisão minuciosa e uma limitação temporal explícita, de forma a definir um horizonte claro para o fim da política, neutralizando as influências dos segmentos econômicos interessados em sua perpetuação. Isso possibilitará que consumidores de renda média deixem de transferir recursos para classes de renda superior e para uma política industrial pouco eficiente”.[13]

No caso específico dos subsídios para as fontes incentivadas (renováveis) e para a micro e minigeração distribuída, aparentemente justificados pela necessidade de transição energética também custeados pelos consumidores de energia elétrica, muitas vezes com perfil de renda inferior ao dos beneficiários da política, consistindo em verdadeira transferência de renda daqueles de capacidade econômica inferior para os de capacidade econômica superior.

É, inclusive, o que conclui o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, no texto “O efeito “Robin Hood às avessas” da energia solar Estudo sobre o contexto socioeconômico da evolução da geração distribuída no país e o peso da energia no orçamento das famílias brasileiras” in verbis:

A correlação entre a presença de sistemas fotovoltaicos nas principais capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte) com o nível de renda e o peso das contas de luz para as famílias conforme a classe social mostra que as atuais regras da geração distribuída favorecem as famílias mais ricas e pressionam a renda das mais pobres, comprometendo outros gastos do seu orçamento. Na prática, portanto, embora os custos gerados pelos incentivos à GD sejam pagos por todos os consumidores, os benefícios são concedidos majoritariamente às classes mais privilegiadas.

A discrepância também é observada nos projetos empresariais, com 20% da potência instalada por pessoas jurídicas (ou 10% de toda a capacidade de GD instalada no país) pertencente a empresas com capital social superior a R$ 100 milhões.

Desta maneira, percebe-se que a forma como se encontram estruturados os subsídios no setor elétrico brasileiro (embutidos nas tarifas de energia elétrica) termina comprometendo cada vez mais o orçamento das famílias até o ponto das de baixa renda que não se enquadram como beneficiárias da Tarifa Social de Energia Elétrica não terem mais condições de pagamento (o que prejudica a equidade energética do país).

Por outro lado, os custos de eventuais conexões clandestinas feitas pelos consumidores sem condições de pagamento também são suportados pelos demais consumidores, sob a rubrica de perdas não técnicas, o que, por sua vez, também pressiona para o alto o valor das tarifas de energia, afetando as condições de pagamento destes consumidores remanescentes, fato que gera verdadeiro ciclo vicioso.

Assim, chega-se à triste conclusão de que os subsídios, inclusive para a geração de energia a partir de fontes renováveis podem estar contribuindo para um aprofundamento das desigualdades sociais do país, se mantidos nos moldes como se encontram no setor elétrico brasileiro.

Por isso, torna-se urgente uma revisão da real necessidade desses subsídios (mesmo às fontes renováveis), bem como dos seus beneficiários e segmentos da sociedade que arcam com eles.

Ora, se, na dicção do art. 225 da Constituição, a defesa e a preservação do meio ambiente constituem direito e dever do Poder Público e de toda a coletividade, não parece razoável que apenas um único grupo arque sozinho pela transição energética, quando todos irão usufruir de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Ressalte-se que a crítica não é dirigida à transição energética em si, mas apenas a seu incentivo às custas do consumidor via subsídios embutidos na tarifa de energia elétrica, sem foco e redução gradual.

E, como visto, a manutenção do sistema atual de subsídios tende a agravar as desigualdades sociais, além de sobrepor sustentabilidade ambiental à equidade energética.


[1] BLOG.ESFERA. Dos primórdios ao Mercado Livre: a história da energia elétrica no País. Disponível em: https://blog.esferaenergia.com.br/mercado-livre-de-energia/historia-energia-eletrica-brasil. Acesso em 16/03/25.

[2] EMPRESA DE PESUISA ENERGÉTICA- EPE. Relatório Síntese do Balanço Energético Nacional 2024 – ano base 2023. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-819/topico-715/BEN_S%C3%ADntese_2024_PT.pdf. Acesso em 16/03/25.

[3] WORLD ENERGY COUNCIL. World Energy Trilemma Report 2024. Disponível em: https://www.worldenergy.org/publications/entry/world-energy-trilemma-report-2024. Acesso em: 16/03/25.

[4] ADAPTA BRASIL MCTI. Segurança energética. Disponível em: https://adaptabrasil.mcti.gov.br/detalhes-energia#:~:text=A%20Ag%C3%AAncia%20Internacional%20de%20Energia,1997%20(BRASIL%2C%201997). Acesso em: 16/03/25.

[5] O Conselho Mundial de Energia elabora anualmente, com base em diversos indicadores, o Índice do Trilema Energético, onde avalia e classifica o desempenho energético de diversos países em cada uma das dimensões que compõem a sustentabilidade energética (segurança energética, equidade energética e sustentabilidade ambiental). Para mais informações, vide WORLD ENERGY COUNCIL. Energy Trilemma Index 2018. Disponível em: https://www.worldenergy.org/wp-content/uploads/2018/10/World-Energy-Trilemma-Index-2018.pdf. Acesso em 20/05/2019

[6] WORLD ENERGY COUNCIL Country Profile. Disponível em: https://trilemma.worldenergy.org/#!/country-profile?country=Madagascar&year=2023. Acesso em 16/03/25.

[7] MINISTÉRIO DE MINAS E ENEGRIA. Programa Luz para Todos. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br/destaques/Programa%20Luz%20para%20Todos/sobre-o-programa#:~:text=Os%2020%20anos%20do%20Programa,El%C3%A9trica%20mais%20ambiciosos%20do%20mundo. Acesso em 16/03/25.

[8] AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA. Custo da energia que chega aos consumidores. Disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/tarifas/entenda-a-tarifa/custo-da-energia-que-chega-aos-consumidores. Acesso em: 23/03/25.

[9] IDEC – INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMO. O efeito “Robin Hood às avessas” da energia solar: estudo sobre o contexto socioeconômico da evolução da geração distribuída no País e o peso da energia no orçamento das famílias brasileiras. São Paulo: Idec, 2021. Disponível em: https://idec.org.br/sites/default/files/estudo_gd_robin_hood_as_avessas_2_2.pdf. Acesso em 23/03/25.

[10] Agenda brasileira: desigualdade econômica – Política energética e subsídios no setor elétrico brasileiro: quem paga e quem recebe? Ano 5, no 9, 2024, p. 4. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/42046. Acesso em: 16/03/25.

[11] SANTOS, Juliano Vilela Borges, Ibidem., p. 13

[12]  SANTOS, Juliano Vilela Borges, Ibidem, p. 17

[13] SANTOS, Juliano Vilela Borges, Ibidem., p. 28

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