Auditoria empática

No fictício estado federativo de Arniqueiras, terra de bioma exuberante, existiam vários parques estaduais, gerenciados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Eram parques que atraíam o público em geral, trilheiros, estudiosos de cavernas, da fauna e da flora, e cabia à gerência dos parques administrar os visitantes e ao mesmo tempo preservar o ecossistema da ação decorrente dessas visitas, na ideia de equilibrar o “é preciso conhecer para preservar” com a efetiva preservação frente à ação predatória da indústria do turismo.

A Controladoria-Geral do Estado de Arniqueiras, por meio de sua Superintendência de Auditoria Interna Governamental, tinha uma Coordenação-Geral de Meio Ambiente, responsável pela realização de auditorias nesse tema, e já havia feito diversas destas, envolvendo os processos de segurança e acesso, de arrecadação de recursos, de bolsas de pesquisa, e de serviços terceirizados, sendo um tema recorrente nos planejamentos anuais de auditoria, dada a relevância no contexto estadual.

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O coordenador dessa área resolveu então inovar, realizando uma auditoria baseada em um outro pressuposto, misturando a ideia do varejo de “cliente oculto” (ou cliente misterioso) com um pouco das técnicas de auditoria: Inspeção física, Observação e Reexecução (Manual de orientações técnicas da atividade de auditoria interna governamental do Poder Executivo federal da CGU, de 2017), em uma miscelânea que chamou carinhosamente de “auditoria empática”.

Assim, a equipe estudou a gestão de visitantes de parques em outros estados pela internet, analisou demandas de ouvidoria, as ações disciplinares, os comentários nas redes sociais, notícias na imprensa e os normativos relacionados à interação de visitantes com os parques em Arniqueiras, e de forma qualitativa, instituiu categorias para nortear a análise do tema, por meio dos testes de auditoria.

A equipe, então, agendou visitas a cada parque e usufruiu, de forma oculta, de todas as possibilidades, e foi visitando, conversando com funcionários e trilheiros, fotografando e anotando, como se fosse um interessado visitante, e observou o entorno, o acesso, aspectos invisibilizados e que somente com aquele trajeto seriam possíveis de perceber, com o olhar já direcionado pelas categorias de análise anteriormente definidas, ainda que durante a ação, outras categorias tenham surgido.

Após a fase de campo, o relatório foi indicando questões pontuais, e relacionando essas ao sistêmico da gestão de parques, o que gerou uma reunião de debate com representantes dos parques e da secretaria, em que pontos foram apresentados e soluções foram propostas, aprimorando a governança daquela política pública em seu contexto.

Essa fictícia narrativa ilustra a necessidade de, não para tudo e sempre, de se incluir no cardápio das auditorias governamentais ações que dialoguem com a lógica dos usuários, que coloquem o cidadão na equação, dentro do contexto da política pública, e no caso em comento, na ideia de conhecer, usufruir, mas também de preservar.

Tal abordagem se aplica também a hospitais, escolas, trabalhos de assistência, entre outras políticas que sejam intensivas na interação cotidiana com o cidadão, fugindo de apenas olhar aspectos normativos ou financeiros, sem dialogar com o contexto da prestação do serviço pela ótica de quem dele necessita, enxergando, assim, problemas invisibilizados, e mudando a ordem de prioridade do que é preocupação ou indução da atividade de auditoria interna governamental.

Diferente de certa literatura sobre “Cliente oculto”, que utiliza essa abordagem como mecanismo de detecção de falhas cotidianas de funcionários, e ainda, de uma cultura de medo pela possibilidade de uma inspeção secreta e inopinada, o que se propõe aqui é que a invisibilidade dos auditores sirva para, pela vivência e pelo diálogo, sem a interferência do gestor que se sabe auditado, identificar lacunas, possibilidades e boas práticas, focado na gestão.

A questão das reclamações como mecanismo único de identificação dessas oportunidades de melhoria na gestão é frágil, pois depende não só de questões culturais, mas também da vontade do cidadão de reclamar ou sugerir, o que só ocorre, via de regra, apenas em situações mais graves, o que não permite a detecção de uma série de questões da gestão cotidiana, em especial pelo fato do público desconhecer o padrão de qualidade que deveria ser ofertado.

As formas de auditoria clássica na literatura, como a operacional, de conformidade e a financeira, bem como a ideia de auditoria baseada em riscos, focada na suficiência das salvaguardas frente ao risco, são essenciais, mesmo com toda a modernidade tecnológica, como procedimentos de produção de informação qualificada e relevante, de forma independente, e que realimenta a gestão pública.

Mas, para mitigar o fantasma do insulamento, do tecnicismo, do formalismo e da elegibilidade de prioridades equivocadas, o foco no cidadão norteando a escolha dos escopos e das metodologias é essencial, e isso pode ser feito de forma criativa, na vivência experiencial, sentindo, de forma empática, as dificuldades cotidianas, que temperadas pelas impressões formalmente colhidas por outros meios e pela regra do jogo, pode trazer interessantes diagnósticos para a promoção da qualidade em um sentido amplo.

Em tempos nos quais a ideia de compliance resgata, ainda que equivocadamente, um foco na conformidade e na conduta individualizada de agentes públicos, o que pode se converter em uma cornucópia de geração de normas e de burocracia, a reflexão da auditoria empática possibilita outros olhares sobre a necessidade de se avaliar para melhorar, indispensável, e que por vezes é objeto de críticas muito mais por conta da abordagem do que pela resistência à melhoria do gestor.

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