Inaplicabilidade do dever de licitar em estatais pela ótica do TCU

Há situações em que é juridicamente viável não realizar licitação? Ao menos desde a Constituição de 1988, a dúvida faz parte do cotidiano das empresas estatais.

Depois de terem sido apanhadas pela maré da universalização do dever de licitar em moldes rígidos e uniformes, cujo ápice foi a Lei 8.666, de 1993, paulatinamente foi aumentando o grau de consenso ao redor da premissa, estabelecida pelo próprio texto constitucional, de que as estatais fariam jus a um sistema de licitação e contratos diferenciado, mais compatível com sua natureza empresarial.

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Ademais, a experiência foi revelando que, em situações específicas, o dever de licitar poderia prejudicar, ou mesmo inviabilizar, o próprio exercício das atividades para as quais as empresas haviam sido criadas — uma contradição, pois a licitação não pode ser um fim em si mesmo.

A Lei das Estatais, de 2013, é fruto desse movimento. No campo das licitações, ao menos duas providências importantes foram tomadas pelo legislador. De um lado, buscou-se delinear regras de contratação que simultaneamente atendessem aos princípios da administração e fossem compatíveis com a agilidade e eficiência que as estatais demandam. De outro, delimitou-se as hipóteses em que a licitação, mesmo à moda das estatais, não seria obrigatória, por se referirem ao núcleo da atividade empresarial.

As hipóteses legais de inaplicabilidade do dever de licitar às estatais, previstas no art. 28, § 3º, I e II, foram uma novidade. E, como tal, passaram ter suas possibilidades e limites testados — por gestores e controladores. Após mais de dez anos de vigência da Lei das Estatais, já há conjunto significativo de decisões do TCU sobre o assunto. Destaco algumas de suas manifestações acerca do inciso I do § 3º do art. 28.

Em 2017, por exemplo, o TCU consignou que a Telebrás, “ao prover infraestrutura e redes de suporte para o mercado [via contratação da capacidade satelital do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas], (…) est[aria] exercitando competência prevista [em decreto]”. Por essa ótica, a “entidade est[aria] prestando um serviço relacionado com seu objeto social, o que implica[ria] dizer que ela está dispensada de realizar licitação” (acórdão 2033).

Em 2019, contudo, o TCU rechaçou a possibilidade de a Eletronorte contratar, sem licitação, a construção de linhas de transmissão e subestações. Isso porque a licitação só poderia “ser afastada na atuação da estatal em sua área finalística, em situações nas quais [fosse] demonstrada a existência de obstáculos negociais, com efetivo prejuízo às [suas] atividades” (acórdão 1528).

Em 2024, o TCU voltou a analisar a possibilidade de estatal contratar, sem licitação, a execução de obras — no caso, a Eletronuclear pretendia concluir a construção de uma usina. Mas apesar de a atividade (construção de novas usinas) compor o objeto social da companhia, entendeu o Tribunal que o art. 28, § 3º, I da Lei das Estatais só englobaria “obras e serviços executados diretamente pela estatal em sua atividade fim, utilizando-se de mão de obra própria para desenvolvê-los” (acórdãos 666 e 2101).

As decisões revelam justa preocupação do TCU em impedir excessos no uso da hipótese de licitação inaplicável por estatais. O desafio, nada trivial, é fazê-lo de modo a evitar a criação de precedentes que possam ter efeitos colaterais indesejados.

No caso de 2024, por exemplo, não havia mesmo justificativa para a ausência de licitação. O elemento que talvez o aparte dos demais parece ser a pretensão da estatal de delegar a terceiros, via contratação, a integralidade da execução de projeto abarcado por seu objeto social, e não buscar terceiros para apenas auxiliá-la a cumprir missão sua.

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