Em expansão no Brasil, pesquisa clínica enfrenta obstáculos para crescimento

O Brasil está entre os 20 países líderes no ranking mundial de pesquisa clínica, ficando na frente entre os latinoamericanos[1]. Segundo o mais recente relatório da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2023 foram submetidos quase 300 Dossiês Específicos de Ensaios Clínicos, esses são protocolos de novos estudos clínicos voltados à pesquisa de medicamentos². O país está crescendo nesse campo, com uma nova regulamentação e perspectivas promissoras, mas ainda não explora seu potencial completo – perdendo competitividade no mercado internacional. 

A pesquisa clínica é vista como uma etapa primordial de inovação na área da saúde. Por meio desse processo, a segurança e eficácia de novos tratamentos são estudadas, de forma a ampliar a oferta terapêutica no mercado e também fornecer dados para decisões médicas e de saúde pública.

Nos últimos anos, os estudos científicos estão em expansão no Brasil. Entre 2019 e 2024, a pesquisa clínica no Brasil passou da marca de 300 para os atuais 500 estudos clínicos produzidos anualmente, de acordo com a Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (Abraco)³. 

O país tem alguns diferenciais para se destacar: a presença de centros de pesquisa qualificados para estudos em saúde, como o Instituto Nacional do Câncer (Inca), um sistema de saúde organizado em torno do SUS, e a ampla diversidade populacional, necessária para garantir a acurácia dos dados. 

“O país tem mais potencial para implementação de mais pesquisas clínicas devido a sua diversidade populacional, sistema de saúde sólido, quadro regulatório estabelecido, necessidades de saúde específicas e capital humano qualificado”

Gustavo Morais, gerente de Operações Médicas da AbbVie.

“A diversidade étnica e genética da população aprimora a aplicabilidade dos estudos. E, quando feita aqui, as pesquisas clínicas podem atender às necessidades de saúde locais, que exigem soluções específicas. Além disso, fortalecem o nosso sistema de saúde, permitindo que pacientes brasileiros tenham acesso a tratamentos inovadores e impulsionando o desenvolvimento econômico e científico do país”, diz Fernando Mos, diretor médico da AbbVie no Brasil. 

Ele enumera que a expansão da pesquisa clínica poderia atrair investimento estrangeiro, gerar novas oportunidades de empregos, melhorar a infraestrutura de saúde, capacitar profissionais e potencialmente reduzir custos de saúde com terapias mais eficazes, assim como melhorar a qualidade de vida da população. 

Forças a serem exploradas

Assim, evidentemente, o crescimento é uma boa notícia – mas o Brasil fica aquém da sua capacidade. Para se ter ideia, entre 2006 e 2019, foram realizadas quase 250 mil pesquisas clínicas em todo o mundo, sendo que, desse total, pouco mais de 6 mil estudos foram efetuados pelo Brasil, segundo a Abraco³. 

Além disso, a maioria dessa produção científica está concentrada em países da Europa e Estados Unidos, com a América Latina ficando para trás. Embora o Brasil esteja entre as dez maiores economias do mundo, o país se estabelece abaixo no ranking de pesquisa clínica, sendo atualmente o vigésimo colocado. Dados do Instituto Brasil de Pesquisa Clínica (IBPClin) estimam que o Brasil seja responsável por apenas 2% desses estudos clínicos feitos no mundo

Porém, o país tem competência para crescer. De acordo com relatório publicado pela Interfarma, caso haja uma ampliação da pesquisa clínica em território nacional, o Brasil pode ocupar 10ª posição no ranking global nos próximos anos, sendo responsável por 4,5% dos estudos realizados. Dessa forma, espera-se que mais de 55 mil pacientes se beneficiem, estimulando o mercado para cerca de 48 mil profissionais científicos. Nessa perspectiva, estima-se que mais de R$ 5 bilhões sejam movimentados apenas com essa atividade econômica.

“O país tem mais potencial para implementação de mais pesquisas clínicas devido a sua diversidade populacional, sistema de saúde sólido, quadro regulatório estabelecido, necessidades de saúde específicas e capital humano qualificado”, explica Gustavo Morais, gerente de Operações Médicas da AbbVie. “A combinação desses fatores promove um ambiente favorável para a expansão de estudos clínicos, beneficiando também o avanço global da ciência médica”, complementa. 

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Para Raphael Ribeiro, do IBPClin, o país ainda se sobressai por seguir padrões éticos e técnico-científicos que se adequam à conformidade internacional – nesse aspecto, o Brasil se aproxima do mercado internacional ao realizar estudos multicêntricos, por exemplo. O executivo também cita a alta taxa de retenção dos participantes brasileiros na adesão aos estudos clínicos, o que impacta na qualidade dos dados coletados.

Em meio a tanto potencial, por que então o Brasil ainda tem números tímidos em pesquisas clínicas? 

Um dos motivos seria a alta complexidade de processos e a burocracia ética e regulatória. “Um ensaio clínico pode obter aprovação mais rapidamente nos Estados Unidos pela FDA [Food and Drug Administration, a agência federal americana] do que no Brasil, devido a diferenças nos processos regulatórios”, analisa Erica Kagiyama, gerente de Operações Clínicas da Abbvie. Essa demora pode desestimular as indústrias que, após anos de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, precisam testar as tecnologias – o que, em última análise, atrasa também a chegada de novos tratamentos aos pacientes. 

Para enfrentar o problema, em maio deste ano, entrou em vigor a Lei 14.874/2024, que regula pesquisas com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. “O cenário de pesquisas clínicas no Brasil é promissor e está em transformação acelerada, principalmente após essa legislação”, explica Ribeiro, do IBPClin. 

Ainda é cedo para mensurar uma transformação na prática, mas, na visão dele, a norma é capaz de estabelecer maior previsibilidade e agilidade na aprovação regulatória ao reduzir o tempo para o início dos estudos. Assim, o país poderá se tornar mais competitivo no cenário internacional de produção de pesquisas. 

“A perspectiva é de crescimento contínuo, impulsionado pelos avanços legislativos, pela diversidade populacional e pelo interesse crescente de investidores em incluir o Brasil em seus projetos globais”, diz Ribeiro. 

“Um ensaio clínico pode obter aprovação mais rapidamente nos Estados Unidos pela FDA [Food and Drug Administration, a agência federal americana] do que no Brasil, devido a diferenças nos processos regulatórios”

Erica Kagiyama, gerente de Operações Clínicas da Abbvie.

Kagiyama, da AbbVie, concorda com essa perspectiva: “a nova lei proporciona benefícios sociais e econômicos e harmoniza o ambiente regulatório brasileiro às normas e boas práticas internacionais em pesquisa clínica. Com uma segurança jurídica mais robusta e maior previsibilidade dos prazos regulatórios, o Brasil tem o potencial de se tornar ainda mais atraente para pesquisas envolvendo seres humanos.” Se as impressões se confirmarem, será possível ver a participação nacional no número de pesquisas clínicas crescer.  

Para Ribeiro, do IBPClin, existem outros desafios que podem ser citados: “Existe uma infraestrutura desigual entre as regiões que ficam fora dos centros urbanos, que têm um menor acesso a recursos para pesquisa clínica. Também há um baixo investimento local, tanto do setor público quanto do privado para a pesquisa científica”, pontua.

A logística de entrega de insumos, medicamentos e equipamentos em todo o país também é um obstáculo. “Por conta dessa logística complexa, pode acontecer atrasos e altos custos devido às dificuldades no transporte para todo o país”, diz o executivo.

Além da questão logística relacionada a materiais, também há essa dificuldade com os participantes durante o processo de coleta de dados do estudo. Alguns indivíduos têm que se deslocar de suas cidades para os centros de referência para serem acompanhados durante cada etapa da pesquisa.

“Tenho pacientes que precisam viajar por três horas de avião para conseguir o acompanhamento na pesquisa”, relata Danielle Leão, hematologista da Beneficência Portuguesa de São Paulo (BP) e pesquisadora clínica. “Do ponto de vista profissional, pelo menos para o médico, precisamos nos dedicar para a pesquisa e ao mesmo tempo para outras atividades relacionadas ao trabalho”, acrescenta a hematologista.

Apesar dos obstáculos, os especialistas endossam a necessidade do desenvolvimento e expansão das pesquisas clínicas no Brasil. “Essas pesquisas são cruciais para atender a necessidades ainda não atendidas, promover a educação médica contínua e aprimorar a qualidade de vida dos pacientes”, diz Kagiyama, da AbbVie. 

Nessa linha, ampliar as pesquisas clínicas significa aumentar as chances de novos tratamentos para doenças graves e complexas – o que se torna cada vez mais necessário diante da mudança do perfil da população, que vive cada vez mais e é exposto a danos do atual estilo de vida urbano. 

Em 2023, houve 28 incorporações foram realizadas nas seguintes áreas, segundo o Ministério da Saúde: nove tecnologias para doenças raras, seis para doenças infecciosas, quatro para oncologia, três para doenças crônicas e seis para outras doenças. As incorporações incluem produtos para diabetes, tuberculose, HIV, esclerose múltipla, fibrose cística, hemofilia, mieloma, além da vacina contra a dengue. Para oncologia, foram dois medicamentos e dois procedimentos

Essas especialidades se relacionam diretamente a uma crescente procura por tratamentos para condições prevalentes como câncer, diabetes, hipertensão arterial ou dislipidemia, por exemplo.

“Essas são as áreas responsáveis pela maior mortalidade dos seres humanos. Em muitos casos, como na oncologia, há um limite em que não conseguimos mais ajudar os pacientes com as alternativas disponíveis no momento. A pesquisa clínica visa melhorar esse cenário, em busca de tratamentos melhores para o controle de diversas doenças”, observa Leão, da Beneficência Portuguesa de São Paulo (BP).

Estudos voltados à infectologia também têm destaque, uma vez que atuam em contextos do desenvolvimento de fármacos ou vacinas para doenças infecciosas e parasitárias emergentes, assim como ocorreu durante a pandemia de Covid-19 e do Zika. 

“As doenças infecciosas são uma preocupação constante em saúde pública, devido ao potencial de surtos e epidemias. Com o aumento da resistência pelo uso indiscriminado de agentes anti-infecciosos, torna-se crescente a necessidade de medicamentos mais eficazes juntamente com políticas de uso adequado”, pontua Morais, da AbbVie. Dessa forma, ter uma estrutura eficiente para pesquisas clínicas coloca o país na frente nesses cenários.

Fontes: 

[1] https://www.interfarma.org.br/wp-content/uploads/2023/08/Pesquisa-clinica-2022_atualizado.pdf 

[2] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/medicamentos/pesquisa-clinica/copec-_relatorio-de-atividades-2023.pdf 

[3]  https://abracro.org.br/pesquisaclinicanobrasil/ 

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-11/crescimento-de-pesquisas-clinicas-no-brasil-e-tema-de-simposio-no-rio 

[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14874.htm 

[6] https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/ministerio-da-saude-esta-preparado-para-incorporar-novos-tratamentos-no-sus-para-pacientes-com-neuroblastoma-e-outras-doencas 

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