O que o caso Débora Santos nos diz sobre ‘a Justiça’?

Conceituar algo é sempre uma tarefa desafiadora, não à toa ser muito comum na fase oral dos concursos públicos para alguns cargos da área de Direito, como magistratura ou Ministério Público, os candidatos serem questionados acerca da natureza jurídica disso ou daquilo. Não, não é fácil colocar num espaço de poucas palavras o significado de coisa nenhuma, já que sempre se corre o risco de limitar ou ampliar o seu alcance.

O direito natural, por exemplo, pode ser conceituado como aquele que antecede a formação da sociedade política. Locke nos diz que a vida, a propriedade e a liberdade seriam, por exemplo, direitos naturais e que os indivíduos, ao constituírem entre si o pacto social, o fazem com o objetivo de resguardar esses direitos.

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John Locke é um importante teórico do liberalismo clássico que tem como opositor Jean-Jacques Rousseau e sua ética republicana. Tanto o liberalismo de Locke quanto o republicanismo de Rousseau pertencem ao pensamento contratualista, que serve de base para o constitucionalismo germinado na Idade Moderna, com a sua noção de indivíduo e direitos naturais inalienáveis ao homem (as mulheres, neste momento, seguem invisibilizadas).

Esses direitos naturais inalienáveis, com a nova semântica do constitucionalismo, são positivados, inicialmente nas Cartas de Direito como a Declaração de Direito do Povo da Virgínia de 1776 e a Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos da França de 1789, e, posteriormente, nas Constituições e seus preâmbulos.

O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por exemplo, define como valores supremos do nosso Estado Democrático de Direito o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

Aqui debateremos um pouco sobre a liberdade e a sua primazia nos Estados modernos. A liberdade de expressão é um direito basilar, sendo um dos primeiros a serem resguardados pelo constitucionalismo. A censura prévia, por exemplo, é proibida no nosso Estado Democrático de Direito, que prevê, em contrapartida, a responsabilização por manifestações danosas à honra ou imagem de outrem, nos termos do artigo 5º, inciso V, da Constituição Federal de 1988.

O ministro Edson Fachin, relator da ADPF 572, quando da prolação do seu voto pela improcedência do pedido e reconhecimento da constitucionalidade da Portaria GP 69.2019, instauradora do Inquérito 4781, conhecido como inquérito das fake news de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, nos lembrou, na esteira da teoria lockeana, que a liberdade absoluta só existe no estado de natureza, que é rompido com a formação da sociedade política.

Sobre os limites à liberdade de expressão, Fachin nos lembra a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Schenck v. United States de 1919, onde foi dito que “a mais rigorosa proteção da liberdade de expressão não protegeria um homem que, falsamente, grita ‘fogo’ no interior de um teatro, causando pânico”, além de enfatizar que “não há direito no abuso de direito”, afirmando, naquele caso específico de ameaça ao Supremo Tribunal Federal, que os autores do ato enfrentariam a justiça constitucional.

Como a história não apenas se repete, mas, igualmente, se desdobra, as ameaças de fechamento do STF verbalizadas em 2019 ganharam novos contornos em 2023, com a invasão da Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro, por centenas de pessoas que destruíram, inutilizaram e deterioram o patrimônio público, “ao avançar contra as sedes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, fazendo-o com violência à pessoa e grave ameaça, emprego de substância inflamável e gerando prejuízo considerável para a União”, nos termos da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República ao STF contra Débora Rodrigues dos Santos (Ação Penal 2.508-DF).

O que chama a atenção no voto relator do ministro Moraes não é tanto a afirmação de que a liberdade de expressão não ampara a defesa de atos atentatórios ao Estado de Direito, já que não há discussão quanto a este tocante. O que causa surpresa é, mais uma vez, o contorno novo a antigos conceitos já firmados em nosso ordenamento jurídico. Explica-se.

Em 2021, Moraes determinou a prisão do deputado federal Daniel Silveira, investigado no Inquérito 4781, por suas manifestações em defesa de ataques ao STF, consolidando a nova interpretação dada à imunidade parlamentar pelo ministro Teori Zavascki, em decisão proferida em novembro de 2015, na Ação Cautelar 4039, que decretou a prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral.

Conforme o novo entendimento da Corte Suprema, a inafiançabilidade não decorreria apenas do rol trazido na Constituição, mas, igualmente, da presença de motivos autorizadores da decretação de prisão preventiva, conforme o disposto no artigo 324, IV, do Código de Processo Penal. A flagrância, por sua vez, decorreria da materialização das ofensas por vídeos disponibilizados nas redes sociais.

Alertou-se, naquele momento[1], para o perigo de novos conceitos elaborados em defesa da Constituição, mas que atentavam contra a própria ordem constitucional, como o malabarismo realizado para mitigar a imunidade parlamentar, que, diante de eventuais críticas, deveria ser revista pela via eleita pelo próprio constituinte: a propositura de PEC passível de alterar o texto constitucional, em atenção à legalidade democrática.

Mas a história, como dito, não apenas se repete como se desdobra e agora estamos diante de uma decisão que nos coloca defronte à Justiça que não vemos, pois de um lado está vandalizada com uma frase riscada de batom vermelho e de outro está distante demais frente aos novos parâmetros fixados pelo Poder que tem a última palavra sobre a Constituição.

O ato praticado por Débora dos Santos, cumpre registrar, é reprovável. Como disse o ministro Fachin na ADPF 572, “a separação dos poderes preserva a liberdade individual, fazendo com que o Estado evite o despotismo e assuma feições liberais”. Logo, não há defesa para qualquer ato atentatório à integridade do STF, e é aqui que precisamos tomar cuidado, porque reconhecer que não há defesa para algo significa dizer que há uma norma punindo aquela conduta, de maneira que aquela lei deve ser aplicada e não um outro dispositivo legal que se aumente o alcance para abranger conduta até então fora do seu radar.

O STF, em mais uma manobra (i)legal, afirma que os atos antidemocráticos praticados por Débora dos Santos em 8 de janeiro de 2023 ocorreram em associação criminosa e no contexto de crimes multitudinários ou de multidão. O Supremo afirma que “a Constituição Federal não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (CF, artigos 5º, XLIV, e 34, III e IV), tampouco a realização de manifestações públicas visando à ruptura do Estado de Direito, através da extinção das cláusulas pétreas constitucionais, dentre elas a que prevê a Separação de Poderes (CF, artigo 60, § 4º), com a consequente instalação do arbítrio”.

Esquecem, porém, que essas cláusulas estão inseridas no texto constitucional para salvaguarda do povo, tendo como destinatário aquele com poder real de causar essa ruptura, em regra um agente político ou um outsider com influência e recursos par tanto. Veja bem.

Francisco Weffort em sua obra Por que democracia? nos diz que “palavras podem ser manejadas à vontade. E nenhuma terá sido mais distorcida no Brasil de após 1964 do que a palavra revolução”, indicando que no Brasil de 1982, após as eleições diretas para os governos estaduais e uma forte crise econômica, o horizonte que se vislumbrava era tanto o da democracia como o da ditadura, e, considerando que a escolha democrática revelava não uma conquista, mas um disfarce a velhos hábitos que permaneciam intocáveis, nada mais justo que se limitasse às classes dominantes eventual tentativa de reviver um passado ainda tão presente.

Manifestações pedindo o fechamento do STF, dessa forma, são inconstitucionais porque violam o Estado de Direito, mas daí a escolher a dedo uma das participantes dos atos que vandalizou uma das estátuas e tomá-la por todos para condená-la a 14 anos de prisão é alargar o conceito do crime de golpe de Estado para incluir no seu tipo quem compareceu ao ato com um batom, não empregando violência ou grave ameaça no seu brado estúpido.

Afirmar, dessa forma, que “os extremistas buscavam gerar o caos para obrigar as Forças Armadas, ante a interpretação deturpada do art. 142 da Constituição e do Decreto 3.897/2001, na edição de decreto para a garantia da lei e da ordem, com a assunção das funções dos Poderes constituídos[2]” é distorcer o fato de que eventual intervenção das Forças Armadas seria para dissipar os manifestantes e não se submeter à vontade deles, já que inexiste qualquer prova neste sentido, do contrário teria sido apontada pela relatoria.

Outro novo conceito que se imprime ao caso de maneira questionável refere-se ao enquadramento da invasão de prédios públicos no contexto de crime multitudinário, “sendo dispensável, portanto, a identificação de quem tenha efetivamente causado os inúmeros danos acima exemplificados e descritos nos relatórios constantes dos autos, e evidenciando-se que os líderes e responsáveis efetivos deverão responder de forma mais gravosa, nos termos da legislação penal”[3], já que a pronta identificação da acusada torna relevante o fato de que, em relação a ela, é possível pormenorizar a sua participação no ato.

Igualmente, tratar como associação criminosa um grupo de centenas de pessoas desconhecidas, para permitir que a imputação de arma de fogo recaia sobre todos, ainda que apenas um dos integrantes a possua, sem que todos respondam pelo mesmo crime, é mostrar, como disse o ministro Celso de Mello na Pet. 8813, que a espada sem “a Justiça” é arbítrio.


[1] Opinião: A democracia entre vários dissensos e um consenso

[2] p. 43 do voto do Rel. Alexandre de Moraes na AP 2508/DF

[3] p. 59 do voto do Rel. Alexandre de Moraes na AP 2508/DF

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