A (ir)responsabilidade fiscal do Congresso Nacional

A construção do orçamento público federal no Brasil é um processo complexo e multifacetado, que exige uma delicada interação entre os Poderes Executivo e Legislativo, e que é regida por diversos atos normativos, dentre os quais se destaca a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000), que estabelece princípios e normas de finanças públicas e elenca uma série de medidas destinadas essencialmente a manter o equilíbrio das contas públicas.

Para cumprir seus objetivos, o artigo 1º da LRF define que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar.

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Essa relação, no entanto, tem sido marcada por uma série de conflitos e incoerências, especialmente no que diz respeito à responsabilidade dos Poderes na formação do orçamento público e no cumprimento das metas fiscais e orçamentárias definidas pelo Estado brasileiro.

Embora a meta fiscal esteja definida na Lei Orçamentária Anual (LOA) e a responsabilidade sobre seu cumprimento recaia quase exclusivamente sobre o Poder Executivo, é no Legislativo que a Lei encontra seu maior adversário, e talvez sejam os parlamentares seus maiores sabotadores.

Enquanto o governo federal é frequentemente criticado por sua suposta falta de responsabilidade na gestão das contas públicas, é no Congresso Nacional que estão os maiores movimentos que enfraquecem os esforços de equilíbrio fiscal. Esse artigo pretende explorar essa complicada dinâmica, de equilibrar interesses frequentemente antagônicos e compartilhar responsabilidades na gestão orçamentária, destacando as contradições e os desafios que ela impõe à gestão fiscal no Brasil.

Conforme definido na Constituição Federal (art. 165), cabe ao Poder Executivo propor as leis orçamentárias, que são o Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA), que são encaminhadas ao Congresso Nacional para apreciação, discussão e votação de seus termos.

Os membros do Poder Legislativo podem, dentro de suas atribuições, analisar e modificar o projeto de lei orçamentária, podendo incluir emendas e ajustes que considerem necessários. No entanto, essa prerrogativa de discutir e modificar o orçamento público tem sido utilizada frequentemente de maneira contrária aos princípios de responsabilidade fiscal pelo Congresso Nacional.

As famosas emendas parlamentares, cuja vasta maioria carece de eficiência ou mesmo de justificativas econômicas plausíveis, motivadas por interesses regionais, setoriais ou até mesmo pessoais, representam apenas a última investida de um Congresso cada vez mais empoderado e que se importa cada vez menos com os resultados efetivos e objetivos de longo prazo das políticas públicas.

Em nome de influências políticas momentâneas – e/ou outros interesses – as emendas sintetizam o enfraquecimento das políticas públicas promovidas pelo governo federal, tudo para salvar a governabilidade de um estado já caótico e cada vez mais ineficiente.

Além disso, é o Congresso que constantemente aprova uma série de medidas que reduzem a arrecadação federal, sem a devida avaliação de seus impactos nas contas públicas.

É o Poder Executivo, contudo, que é regularmente criticado pela mídia e pelo mercado como irresponsável. Recai sobre o governo federal a pecha do Estado grande, da necessidade de reformar, gastar menos e conceder menos benefícios.  O aumento do endividamento decorrente da expansão dos gastos públicos e a dificuldade de cumprir metas fiscais tem sido apontados como sinais da falta de responsabilidade na administração das contas públicas.

Mas o que fazer quando muitos dos benefícios fiscais existentes no estado brasileiro foram propostos, criados, mantidos ou majorados pelo Congresso Nacional? Ou quando as estimativas de impacto orçamentário e medidas de compensação previstas no artigo 14 da LRF em caso de renúncia de receitas são cobradas do Executivo, mas não do Poder Legislativo?

Como lidar com um mundo em que o Poder Executivo busca cumprir as metas e objetivos fiscais, mas o Legislativo reiteradamente age para sabotar esse compromisso sem que haja cobranças ou qualquer imputação de (ir)responsabilidade?

Enquanto o governo federal é pressionado a adotar medidas de austeridade que garantam a sustentabilidade fiscal, o Congresso Nacional tem agido de forma contraditória; por um lado, muitos parlamentares cobram do Executivo uma gestão mais responsável das contas públicas; por outro, aprovam medidas que aumentam os gastos ou reduzem a arrecadação, sem a devida preocupação com o impacto fiscal de longo prazo.

Além do exemplo das emendas parlamentares e da falta de transparência e critério na destinação de seus recursos, o Congresso também atende a interesses setoriais, e, em nome do impulsionamento da atividade econômica, da preservação de empregos ou do desenvolvimento regional, concede benefícios e renuncia a receitas, resultando na redução da base tributária e no aumento da pressão sobre o governo federal para cortar gastos essenciais.

Nesse sentido, vale registrar que mesmo quando o Executivo busca vetar medidas que enfraquecem o orçamento e a gestão fiscal do país, o empoderado Congresso age para derrubar esses vetos, em um movimento que não só desequilibra as contas públicas e compromete a responsabilidade fiscal, como mostra a falta de maturidade institucional de um importante Poder da República.

Exemplos de tais medidas são inúmeros. A política de desoneração da folha, criada em 2011 como medida transitória para estimular a geração de empregos, substituindo a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos por um percentual sobre o faturamento, que além de reduzir consideravelmente a arrecadação federal, foi prorrogada por muito tempo pelo Congresso sem que houvesse qualquer estimativa de impacto financeiro ou medida de compensação das receitas renunciadas.

De forma parecida, o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) – que previa isenção de tributos federais por 60 meses e foi criado em 2021 para ajudar o setor de eventos a se recuperar dos impactos da pandemia de Covid-19 – segue sendo prorrogado, atendendo ao lobby das empresas do setor, gera custos fiscais consideráveis que não foram produzidos nem mesmo propostos pelo governo federal, que tenta extingui-lo ou reduzi-lo, gerando disputas com o Congresso.

A Zona Franca de Manaus, conjunto de incentivos fiscais estabelecidos em 1967 com o intuito de promover o desenvolvimento econômico da região amazônica e reduzir desigualdades regionais, também pode ser citada como exemplo da dependência de subsídios do Estado, cuja manutenção gera custos fiscais elevados, e que ao contrário dos efeitos temporários inicialmente pretendidos, acabam se perpetuando devido à pressão de grupos beneficiados e à dificuldade política de eliminar incentivos fiscais.

Estudos realizados pela Tax Expenditures Lab[1] demonstram que, no Brasil, a maioria dos benefícios fiscais não tem data para terminar nem controle sobre os resultados à população. Isso demonstra não apenas a falta de responsabilidade fiscal, mas também a falta de maturidade dos atores envolvidos, que parecem prestar mais atenção aos lobbies dos setores do que aos resultados efetivos das políticas públicas.

Ainda assim parece conveniente criticar apenas o governo federal, que ao fim e ao cabo é quem administra os recursos públicos. Repetir o mantra de que a culpa de um estado fiscalmente desequilibrado é sempre do Executivo é simplesmente mais fácil do que dividir a responsabilidade com 594 congressistas.

Pressionar o governo para encontrar mais rubricas e despesas para cortar também parece mais fácil do que reconhecer a atuação corporativista de parte considerável do Congresso Nacional, que atua de modo a perpetuar privilégios de poucos às custas da população brasileira.

A própria dinâmica das regras fiscais brasileiras também não ajuda. Enquanto as limitadas sanções existentes no ordenamento jurídico relacionadas ao descumprimento de normas fiscais estiverem direcionadas ao Poder Executivo e inexistirem punições ou sequer questionamentos ao Legislativo quando o desequilíbrio nas contas públicas decorrer da atuação parlamentar, a resolução deste problema não parece promissora.

De todo modo, a incoerência e fragmentação do orçamento público brasileiro apenas refletem a falta de alinhamento entre as prioridades do Estado brasileiro e as demandas setoriais, momentâneas e personalistas do Congresso, que representam interesses muito amplos e distintos, e cujo crescente protagonismo aprofundou ainda mais as inconsistências dessa já complicada relação.

É certo, todavia, que uma maior coordenação e diálogo entre os Poderes poderia fortalecer os mecanismos de transparência e participação popular no processo orçamentário, de modo a construir um orçamento público que atenda às necessidades do país de forma eficiente, responsável e madura, garantindo a sustentabilidade fiscal e o bem-estar da população.

No entanto, não há dúvida que os parlamentares dificilmente irão abrir mão de suas recentes conquistas, incluídas, dentre elas, o direito de ser fiscalmente irresponsável e de desequilibrar as contas públicas sem que sejam questionados ou responsabilizados por isso.


[1] Relatório elaborado em parceria entre a FGV e a Tax Expenditures Lab. Disponível em: https://www.taxexpenditures.org/

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