Produção antecipada da prova e fishing expedition

O Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105/2015 – CPC 15) trouxe profundas alterações na ação de produção antecipada de provas,  transformando-a em um procedimento simples e autônomo, inserido no capítulo que trata das modalidades de prova. Essa mudança ampliou significativamente as possibilidades de produção probatória.

No entanto, essa flexibilização também abriu espaço para práticas abusivas, como a chamada fishing expedition (ou “pescaria probatória”), em que uma parte busca, de forma indiscriminada e especulativa, obter documentos ou informações da contraparte sem um objetivo claro ou justificado. Essa prática tem sido alvo de críticas e controvérsias no direito brasileiro, especialmente quando utilizada como ferramenta de pressão ou tentativa de se realizar uma verdadeira devassa em documentos da parte contrária.

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No regime anterior ao CPC 15, a produção antecipada de provas era limitada a “interrogatório da parte, inquirição de testemunhas e exame pericial” (art. 846). Com o novo Código, passou-se a permitir a “produção de qualquer prova” (art. 382, § 3º).

Considerando que a exibição de documentos também deixou de existir como uma ação cautelar típica, parte da jurisprudência passou a autorizar que pedidos de exibição de documentos sejam formulados por meio do procedimento de produção antecipada de provas[1]. Contudo, essa questão ainda é controversa, pois há quem entenda que a exibição de documentos deva ser requerida por meio de ação autônoma, ou incidentalmente[2].

O CPC 15 também ampliou as hipóteses de cabimento. Anteriormente, como em toda medida cautelar, era imprescindível a comprovação do periculum in mora. No novo regime, além da hipótese de urgência (art. 381, inciso I), foram introduzidas duas novas possibilidades: quando a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito (art. 381, inciso II); e quando o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação (art. 381, inciso III).

O procedimento passou, então, a ser autônomo e dispensar a propositura de demanda futura como ação principal fundada na prova produzida. Afinal, a partir do CPC 15, a produção antecipada de provas pode se prestar até mesmo para dissuadir as partes de iniciar litígio futuro ou para a criar condições para autocomposição.

A natureza autônoma da produção antecipada da prova foi afirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconheceu o “direito material à prova, autônomo em si — que não se confunde com os fatos que ela se destina a demonstrar (objeto da prova), tampouco com as consequências jurídicas daí advindas, podendo (ou não) subsidiar outra pretensão”[3].

Por fim, com o intuito de abreviar o procedimento, o legislador impôs severos limites ao contraditório e à ampla defesa. De acordo com o art. 382, §4º, do CPC 15, “neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário”.

Apesar das boas intenções do legislador, verifica-se que a ampliação das hipóteses de cabimento e, ao mesmo tempo, a limitação ao contraditório e ampla defesa, têm gerado inúmeros problemas práticos.

Imagine-se uma hipótese de clara ilegitimidade passiva: o requerente se vale da produção antecipada de provas para obter um documento que não está na posse do requerido. Se, de acordo com a lei, não cabe defesa, nem recurso, como deverá o requerido se comportar, caso o juiz determine a exibição de documentos?

Pense-se, ainda, na hipótese de o requerente, maliciosamente, querer fazer uma verdadeira devassa em e-mails e documentos do requerido, à semelhança do processo de discovery norte-americano. Como poderá o requerido se defender de uma ordem tão abrangente que venha a ser deferida? E se a ordem abranger documentos protegidos por sigilo? Como se defender se a propositura de uma ação principal nem sequer se faz necessária?

Essas características permitem que a produção antecipada de provas seja utilizada de forma distorcida, como as conhecidas estratégias de fishing expedition ou document hunting, com o intuito de pressionar a parte contrária.

Recentemente, em um caso envolvendo a venda da empresa Kabum para a Magazine Luiza, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu que a investigação configuraria “pesca predatória”. No caso, a juíza havia determinado a apresentação de “todas as comunicações eletrônicas ou físicas” trocadas entre os anos de 2019 e 2021, além da exibição de contratos e outras informações.

O TJSP reformou a decisão, por entender que os requerentes buscavam acesso irrestrito a informações confidenciais, resultando em uma devassa das informações e dados financeiros dos réus e terceiros.

Ainda, a 2ª Câmara Empresarial do TJSP manteve a extinção de um pedido de produção antecipada de provas para quebra de sigilo bancário, que buscava aferir o valor de venda de uma participação societária. O desembargador Sérgio Shimura entendeu que a medida configurava fishing expedition e que “a produção antecipada de provas que não se presta à devassa ou especulação nas contas das rés, com reflexos perante terceiros”[4].

Em outro caso amplamente noticiado pela imprensa, determinou-se, em sede de produção antecipada de provas movida pelo Bradesco contra as Lojas Americanas, “medida de busca e apreensão para que todas as caixas de e-mail institucionais dos (i) diretores da Americanas, dos atuais e dos que ocuparam tais cargos pelos últimos 10 anos; (ii) membros do Conselho de Administração e do Comitê de Auditoria da Americanas, dos atuais e dos que ocuparam tais cargos nos últimos 10 anos; bem como (iii) dos funcionários da área de contabilidade e de finanças da companhia dos atuais e dos que ocuparam tais cargos pelos últimos 10 anos, sejam devidamente copiadas, para que seus backups sejam armazenados junto a esse MM. Juízo”[5].

A decisão baseou-se no art. 381, III, do CPC 15, visto que o Bradesco buscava provas para justificar o ajuizamento de ações de responsabilização dos administradores e acionistas controladores das Lojas Americanas. Tal decisão foi parcialmente reformada pelo STF, por meio da Reclamação 57.996, que determinou a exclusão de emails, comunicações e dados envolvendo advogados em sua atuação profissional[6]. Posteriormente, as partes celebraram acordo e o processo foi extinto.

Em síntese, fazendo-se um balanço da primeira década do CPC 15, é possível chegar a duas conclusões no que diz respeito à nova produção antecipada de provas.

A primeira é a de que a vedação à apresentação de defesa e recurso, prevista no art. 382, § 4º, do CPC 15, vem sendo afastada pelos tribunais. Nesse sentido, a 4ª Turma do STJ decidiu que, “à luz das garantias processuais fundamentais, a melhor interpretação do art. 382, § 4º, do CPC é aquela que não veda em absoluto a resistência à decisão que defere a produção antecipada de provas, admitindo-se o afastamento da limitação de recorribilidade na hipótese em que a parte em face da qual é deferida a produção de provas pretende questionar a própria presença dos requisitos que autorizam a propositura da referida ação”.[7]

A segunda é de que, apesar do alargamento das hipóteses de cabimento da produção antecipada de provas, a jurisprudência tem, na maioria dos casos, barrado expedientes de fishing expedition e devassa em documentos.

Contudo, ainda há bastante insegurança jurídica em torno de várias questões. O requerido deve ser previamente intimado para apresentar defesa? Em caso positivo, em qual prazo? Cabe pedido de exibição de documentos? Se sim, o requerido deve ser previamente ouvido? A decisão que julga o pedido de exibição desafia apelação ou agravo de instrumento?

Diante dos desafios que a prática da última década já revelou, seria altamente recomendável que o legislador promovesse uma reforma no procedimento da produção antecipada de prova. Deve-se, por exemplo, deixar claro que defesa e recurso são sempre cabíveis, proibindo-se pedidos de fishing expedition e estabelecendo-se prazos e regras a serem observados no procedimento. Do contrário, não se atingirá a necessária segurança jurídica que se espera do processo civil.


[1] STJ; 3ª Turma; AgInt nos EDcl no AREsp 2110436 / SP; Relator: Ministro Humberto Martins; Data de julgamento: 24/06/2024. TJSP; 19ª Câmara de Direito Privado; Agravo de Instrumento 2025748-63.2024.8.26.0000; Relator: Daniela Menegatti Milano; Data de julgamento: 12/03/2024.

[2] TJSP; 15ª Câmara de Direito Privado; Apelação Cível 1001521-81.2024.8.26.0596; Relator: Vicentini Barroso; Data de julgamento: 28/02/2025.

[3] STJ; 3ª Turma; REsp nº 2.023.615-SP; Relator: Ministro Marco Aurélio Belizze; Data de julgamento: 14.03.2023.

[4] TJSP; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Apelação Cível 1086686-03.2022.8.26.0100; Relator: Desembargador Sérgio Shimura; Data de julgamento: 24/09/2024.

[5] Processo nº 1000147-05.2023.8.26.0260, que tramitou perante a 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e Conflitos Relacionados à Arbitragem de São Paulo.

[6] STF; RC 57.996/SP; Relator: Ministro Alexandre de Morais; Data de julgamento: 03.04.2023.

[7] STJ; 4ª Turma; REsp nº 2.043.440 – RJ; Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti; Data de julgamento: 29/11/2023.

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