Mulheres na insolvência: quebrando barreiras

Casos de discriminação de gênero no mercado de trabalho resistem aos tempos e à tendência de evolução humana. Frequentemente são protagonizados por figuras públicas e líderes empresariais, que ajudam a expor a persistência do machismo estrutural quando expressam seus pensamentos anacrônicos.

Um sinal de que o mundo anda para a frente é que, não raro, declarações que desqualificam a presença feminina em cargos de liderança repercutem mal, forçam respostas institucionais e levam a perdas financeiras e de credibilidade. Mas o cerne da questão transcende a efemeridade de uma crise de imagem. Trata-se de um reflexo de como as mulheres seguem travando batalhas diárias – e avançando, é preciso constatar – por reconhecimento e ocupação de espaço.

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No universo jurídico, o quadro não é diferente: o mapa do poder no Judiciário brasileiro permanece majoritariamente masculino. No Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, apenas uma mulher compõe o colegiado de 11 ministros. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o panorama difere pouco: entre 33 ministros, apenas 5 são mulheres.

A situação é melhor nos estados, embora ainda desproporcional. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que, em 2024, a participação feminina na magistratura, até o final do mês de abril, é de apenas 36,8%. Dos cargos de ministros, somente 18,8% são ocupados por mulheres; já as desembargadoras representam 23,9%, enquanto as juízas de primeiro grau totalizam 39%.

Essa baixa representatividade feminina nos tribunais superiores não se limita a um dado estatístico. Ela reflete, antes, uma cultura institucional resistente à ascensão das mulheres a postos de poder.

A ministra Cármen Lúcia, única mulher no STF, denunciou diversas vezes a frequente interrupção de sua fala pelos colegas homens. Para tanto, já citou inclusive a pesquisa “Justice, Interrupted: The Effect of Gender, Ideology and Seniority at Supreme Court Oral Arguments”, sobre o efeito do gênero, da ideologia e da idade nos debates dentro da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Os pesquisadores Tonja Jacobi e Dylan Schweers, da Northwestern Pritzker School of Law, analisaram as discussões no Suprema Corte americana desde 1990 e detectaram um padrão constante: as mulheres são interrompidas, em média, três vezes mais do que os homens, embora falem com menos frequência e por menos tempo do que eles.

Essa dura realidade levou o CNJ a criar, em 2023, a política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Judiciário, um direito constitucionalmente previsto no art. 5º, caput, inc. I da nossa constituição. Muitos tribunais locais buscaram seguir a diretiva do CNJ e, infelizmente, ainda encontraram resistências. Mas tal perspectiva alterou as lentes dos responsáveis em preparar essas listas, uma ação afirmativa para mudar uma realidade latente e cruel.

Menciona-se também a Resolução 492/2023 do CNJ que estabelece um protocolo para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário. Uma iniciativa de capacitação de todos os magistrados (homens e mulheres) nas temáticas relacionadas a direitos humanos, gênero, raça e etnia.

Se não tivermos estudos, capacitação e reconhecimento de que somos um país desigual (muito desigual) não teremos nenhuma evolução.

No Brasil, um estudo de Debora Thomé, pesquisadora de pós-doutorado do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp) da FGV, e Mauricio Izumi, professor adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo[1], analisou 69.731 discursos e respectivos apartes proferidos por 315 senadores e 41 senadoras entre 1995 e 2018.

As senadoras foram mais interrompidas e sofreram mais questionamentos, especialmente por homens de seus próprios partidos. Ou seja, o fenômeno não é exclusivo do Judiciário, mas um sintoma do machismo estrutural não só no Brasil, mas no mundo.

Esse comportamento, ainda que muitas vezes inconsciente, atesta que, mesmo nos mais altos escalões do Judiciário, as mulheres seguem batalhando para serem ouvidas. No dia a dia do sistema de justiça, advogadas, promotoras e juízas enfrentam desafios similares.

Até na academia as interações de gêneros provaram que ao longo dos estudos acadêmicos as mulheres são paulatina e sucessivamente silenciadas ou desestimuladas nesses ambientes a usarem a sua voz[2].

Por outro lado, segundo o 1º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira (Perfil ADV), levantamento da OAB nacional, 50% dos registros de advogados no Brasil são de mulheres, e 49% de homens (1% estão entre outras identidades de gênero).

Na área do direito empresarial e da insolvência, tradicionalmente dominada por homens, os desafios persistem, mas os avanços estão entre os mais visíveis. Apesar de tímida, a presença feminina nas câmaras reservadas de direito empresarial nos tribunais brasileiros, mais mulheres têm assumido posições de destaque, atuando como advogadas em reestruturações complexas e juízas em varas empresariais, além do crescimento de mediadoras, peritas, promotoras e administradoras judiciais em processos de repercussão nacional.

A condução de grandes recuperações judiciais e falências, antes um privilégio masculino, hoje é compartilhada com um número crescente de mulheres prontas para transformar e até liderar o mercado de trabalho na advocacia, na administração judicial ou na magistratura.

Grande parte desse avanço aconteceu nos institutos fundados no Brasil para apoiar essas profissionais no campo da insolvência. Enquanto outras áreas do direito já possuíam grupos formados para catalisar as carreiras das profissionais, como no campo do processo civil e da arbitragem, por exemplo, a insolvência só viu seus espaços ampliados para as profissionais mulheres a partir de 2018. Antes as iniciativas eram mais tímidas. Foram essas profissionais, juízas, administradoras judiciais, bankers, advogadas e acadêmicas que resolveram se unir e criar seus próprios espaços para ouvir e serem ouvidas.

Em 2021, em plena pandemia, o Brasil foi palco do primeiro congresso de insolvência em que 98% das palestrantes eram mulheres. Palestrantes, não moderadoras. A partir daí as iniciativas ficaram ainda mais potentes. Grupos de mentorias e o crescimento das iniciativas de networking foram mudando o ambiente que passou a ser mais seguro e menos hostil para essas profissionais.

Um reflexo dessa iniciativa foi também a união para que as profissionais sempre tão invisibilizadas passassem a ser ranqueadas nos rankings de prestígio nacionais e internacionais e que antes contavam somente com nossos pares homens.

Segundo o Relatório Global de Desigualdade de Gênero de 2024[3], produzido pelo Fórum Econômico Mundial, a paridade total no mercado de trabalho só deve ser atingida em 134 anos. O ritmo do avanço estagnou, segundo o relatório, mas nada disso deve ser motivo para desânimo. Ao contrário, deve ser um estímulo à aceleração da presença feminina, que precisa ganhar robustez e pavimentar o caminho para novas gerações de advogadas, juízas e administradoras judiciais capazes de redefinir os padrões.

É imperativo seguirmos vigilantes. A busca por um ambiente jurídico verdadeiramente igualitário exige a desconstrução de práticas e mentalidades que relegam as mulheres a papéis secundários. Cada vez parecerá mais deslocada de nosso tempo essa prática, ainda generalizada, de mulheres sendo interrompidas em plenários, subestimadas em reuniões ou desqualificadas antes mesmo de demonstrarem sua competência.

É preciso reconhecer que as microagressões existem – hoje são mais veladas, mas ferem igualmente. Embora inconscientes, essas microagressões – interrupções, desqualificações e dúvidas sobre o comportamento e a capacidade de uma profissional – minam a confiança, destroem a motivação e drenam uma grande quantidade de energia de uma profissional que deveria estar canalizada para o que ela sabe fazer de melhor: ser competente naquilo que ela escolheu para fazer.

O Judiciário e a advocacia precisam, definitivamente, acompanhar a evolução da sociedade. Há iniciativas, protocolos e incentivos legais. É a ação, é o dia a dia que ditará essa evolução. Os estudos e os dados não mentem e cabe a cada um – homem e mulher – essa transformação. Trabalhemos juntos e atentos. Hoje e sempre.


[1] https://www.scielo.br/j/dados/a/Q4VJ63CS6PCXxJzDBTdxWNN/abstract/?lang=en. Acesso em 07/03/25.

[2] Nesse sentido, confira o excelente estudo conduzido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo sobre a coordenação de Sheila Christina Neder CerezettiCecília Barreto de Almeida, Izabella Menezes Passos Barbosa, Lívia Gil Guimarães, Luciana de Oliveira RamosMarília M. K. Rolemberg Lessa, intitulado Interações de gênero nas saldas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto? Trabalho disponível e publicado em cooperação da Representação da UNESCO no Brasil no âmbito do Programa de Cátedras e Redes UNITWIN, https://unesdoc.unesco.org/in/documentViewer.xhtml?v=2.1.196&id=p::usmarcdef_0000367420&file=/in/rest/annotationSVC/DownloadWatermarkedAttachment/attach_import_eda0aece-a3a1-49e1-9081-a104a1f6f3bd%3F_%3D367420por.pdf&locale=en&multi=true&ark=/ark:/48223/pf0000367420/PDF/367420por.pdf#%5B%7B%22num%22%3A402%2C%22gen%22%3A0%7D%2C%7B%22name%22%3A%22XYZ%22%7D%2C0%2C842%2Cnull%5D Acesso em 10/3/25.

[3] https://www.weforum.org/publications/global-gender-gap-report-2024/. Acesso em 07/03/25.

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