Métodos de judicialização predatória exigem mais que multa individual

O Poder Judiciário brasileiro, historicamente sobrecarregado por uma litigiosidade crônica, enfrenta hoje um de seus maiores paradoxos: enquanto a Constituição Federal assegura o acesso à Justiça como direito fundamental (artigo 5º, XXXV), parte significativa das demandas judiciais não consegue buscar a efetiva resolução de conflitos. São as práticas de exploração estratégica do sistema para fins particulares ou dilatórios de alguns advogados.

Esse fenômeno, denominado judicialização predatória ou abusiva, tem ganhado relevância na agenda de pesquisas jurídicas, especialmente após a edição do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), que buscou coibir abusos processuais sem, contudo, ter obtido êxito quanto à erradicação de práticas antissociais e, porque não, antijurídicas, enraizadas na cultura forense.

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Infelizmente, a aplicação de multa por litigância de má-fé não tem o condão de combater de maneira efetiva a judicialização massiva de demandas genéricas e predatórias, justamente em razão de seu caráter sistêmico e muito organizado, bem como do impacto das centenas de processos distribuídos diariamente, que inviabilizam o acompanhamento e punição em todas as demandas ajuizadas.

Isso porque, como se observa, não se trata de conduta isolada, mas de um modus operandi que transforma o processo judicial em instrumento de pressão econômica, gerando custos estratosféricos para o Estado e a sociedade.

A Recomendação CNJ 159/2024 tratou de forma mais aprofundada o tema, exemplificando 20 condutas processuais potencialmente abusivas, 17 medidas judiciais a serem adotadas no caso concreto e 8 medidas administrativas como recomendações aos tribunais.

Práticas como o ajuizamento repetitivo de ações fragmentadas, a propositura de demandas genéricas sem lastro factual, a utilização de documentos incompletos ou fraudulentos e a concentração de processos sob patrocínio de poucos profissionais são condutas emblemáticas desse fenômeno.

Analisando alguns dados obtidos do CNJ é possível observar que apenas no ano de 2023 o Brasil registrou 83,8 milhões de processos pendentes, e desse total é possível estimar que nada menos que 30% das ações cíveis em andamento nos tribunais estaduais envolvam litigância predatória – com petições genéricas, documentos falsos ou ações repetitivas.

Nesse cenário, a má-fé de advogados se revela como verdadeiro fator agravante, seja pela propositura de ações temerárias, seja pela utilização de recursos protelatórios que prolongam litígios por anos, ou mesmo pela utilização de captação irregular de clientes hipervulneráveis.

No cenário atual do ambiente judiciário é importante destacar que a judicialização predatória não é um mero desvio ético individual, mas um sintoma de falhas estruturais do sistema de Justiça, sendo inconteste a relevância do tema e a importância de sua análise de maneira cautelosa.

Estudos recentes estimam que o custo anual da judicialização predatória para os cofres públicos ultrapassa R$ 12 bilhões anuais, considerando despesas com pessoal, infraestrutura e honorários advocatícios (TJMG/Ipea, 2022). Além disso, a banalização do processo judicial alimenta um ciclo vicioso: quanto mais o Judiciário deixa de investir em sistemas e mecanismos capazes de filtrar demandas abusivas, mais o ajuizamento massivo se propaga, e esse cenário exige uma reflexão urgente sobre o papel de todos os personagens processuais envolvidos neste contexto.

A inexistência de mecanismos fortes de identificação, prevenção e repressão desse tipo de demanda auxilia a perpetuação do comportamento de advogados ofensores, que se aproveitam de ferramentas do Judiciário criadas para alcançar um objetivo constitucional, deturpando-o e transformando em lucro individual.

Em resposta, o artigo 80 do CPC prevê sanções contra litigância de má-fé, incluindo multas e a condenação ao pagamento de honorários advocatícios e custas processuais. No entanto, tais medidas ainda se mostram tímidas e insuficientes para coibir práticas predatórias em larga escala.

Para enfrentar a judicialização predatória não basta a utilização de aplicação de sanções jurídicas de maneira individual, mas uma abordagem multifacetada capaz de combinar reformas institucionais, ferramentas tecnológicas e mudanças culturais na advocacia.

Algumas propostas de mudança contêm proposições com o intuito de refrear a pratica abusiva, como as destacadas:

  1. Fortalecimento do uso de inteligência artificial no monitoramento de litigância abusiva: usar as ferramentas tecnológicas como aliadas de maneira a emprega- las na identificação de padrões de distribuição excessiva de processos. Nesse sentido, a análise de dados pode ajudar a destacar comportamentos repetitivos e abusivos de determinados advogados ou escritórios. Essa foi uma diretriz criada pela Corregedoria Nacional de Justiça em 2023, aprovada no XV Encontro Nacional do Poder Judiciário.

  2. Fiscalização rigorosa pela OAB e punição exemplar: o monitoramento rigoroso por parte da OAB em relação a escritórios de advocacia que promovem práticas predatórias, de maneira mais efetiva e eficiente, com punição adequada de advogados que violam os princípios éticos.

  3. Reformas processuais e aplicação efetiva de sanções: A ampliação da aplicação de penalidades para litigância abusiva, como o aumento de multas previstas no artigo 80 do CPC, pode e deve ser implementada como forma de reprimir as condutas predatórias.

  4. Monitoramento de distribuição excessiva de ações: a criação de mecanismos de identificação de distribuição de número excessivo de demandas por um mesmo advogado ou escritório, fundadas em temas idênticos ou já pacificados pela jurisprudência.

Importante destacar: o combate à judicialização predatória não se limita à adoção de novas leis ou tecnologias. Para além disso, ele exige uma transformação no modo como a sociedade e os operadores do Direito percebem e utilizam o sistema de Justiça.

A advocacia enquanto profissão essencial à administração da Justiça deve liderar esse movimento, promovendo práticas responsáveis e verdadeiramente comprometidas com o bem-estar social, viabilizando garantir a eficiência, a credibilidade e a equidade do Poder Judiciário brasileiro.

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